Uma tarde no arrozal

Narrado por Carla Veríssimo, com os contributos de Julieta Costa. Fotos de Carla Veríssimo e Julieta Costa.

10 Dez. 09:
Desde a última vez que fomos para o campo, a Dora encontrou um trabalho em Inglaterra e partiu dia 7. De ora em diante, passaremos a ter na equipa outra colaboradora.
Hoje decidimos fazer uma saída de apenas um dia, em duas linhas: uma na zona do Baixo Mondego e outra em Aveiro.
Como a nova colega não pode ir, levamos novamente a Rosário.
Estamos na zona do Paul de Taipal e do Paul de Arzila, em Montemor-o-Velho. Existem muitos salgueiros e amieiros, e o coberto vegetal é constituído por caniços, tabua, juncos e bunho.
Faço sozinha um troço da linha, que está sinalizado com BFDs (Bird Fligth Diverter) um tipo recente de dispositivos de sinalização para protecção contra colisões), enquanto a Rosário e a Julieta fazem uma parte não sinalizada.
Além dos BFDs, existem dispositivos anti-poiso/anti-nidificação (para protecção contra electrocussões) em todos os apoios.
Em cada apoio faço um círculo completo, para detectar alguma electrocussão.
Demoro 4 horas a prospectar os 2 km de troço, tendo na verdade que caminhar 4 km, já que tive que fazer os 2 lados da linha, primeiro seguindo num lado e depois voltando para trás no outro.
Além disso, o habitat é arrozal, e existem alguns canais de água que tenho de contornar até chegar novamente à linha.

Reparo em muitos túneis, feitos pelo Lagostim-vermelho-da-Louisiana (Procambarus clarkii), uma espécie introduzida, cujos túneis destroem as plantações de arroz, mas que ao mesmo tempo serve de alimento, entre outras espécies, a cegonhas e garças.










E vemos de facto bastantes cegonhas-brancas por ali.
Apesar de ser uma espécie migradora, cujas populações Europeias invernam em África, a cegonha-branca tem vindo a mudar os seus hábitos migratórios, invernando cada vez mais na Península Ibérica e Norte de África, o que poderá ser explicado pelas disponibilidades alimentares oferecidas tanto pelas lixeiras, um pouco por todo o lado, como pela introdução extremamente bem sucedida do Lagostim-vermelho.
Durante a tarde vemos ainda corvos-marinhos, garças, águias-de-asa-redonda e pegas-rabudas, mas nenhuma das 3 encontrou cadáveres ou outros vestígios.
Uma das águias-de-asa-redonda que vi pousada no apoio 22, estava pousada no apoio 21 quando voltei para trás, e uma que vimos pousada no vão entre o apoio 18 e o 19, estava no fim, pousada entre o 17 e o 18, notando-se claramente os seus territórios.
Apesar de serem duas, a Julieta e a Rosário também demoraram 4 horas: 3 horas a prospectar 1,6 km, pois encontraram muitos canais e tiveram que dar voltas enormes até conseguir chegar de novo à linha, e uma hora também a pé até voltarem à carrinha e me irem buscar ao ponto inicial.
Terminámos a linha do Mondego às 4 da tarde. Se fossemos para Aveiro, já não chegaríamos a tempo de prospectar a linha, com sol, por isso tivemos de regressar a casa e dar por terminado o nosso dia.
Antes ainda conseguimos almoçar em Montemor-o-Velho, apesar de serem já 5 da tarde!
Vou no banco de trás e sinto falta da companhia da Dora...

Do Sapal até à Foz

Narrado por Carla Veríssimo, com os contributos de Julieta Costa, Dora Querido e Nuno Antunes. Fotos de Dora Querido e Carla Veríssimo

25 Nov. 09:
Saímos pela noite e vamos dormir numa residencial na Torreira.
Levamos connosco a nossa primeira voluntária de campo - a Rosário Vitorino.

26 Nov. 09:
Disparamos as primeiras fotografias ainda não são 9 horas. Uma águia-de-asa-redonda, pousada num poste de media tensão. O contexto era perfeito!
Iniciamos a nossa primeira linha pela ria adentro.
Vemos uns barcos e dizemos: Mais valia levar um para fazer a prospecção e deixar um bilhete a dizer: “Prometemos ser breves!!”
O sapal é um terreno duvidoso, mas nós temos as nossas galochas!
Nove e meia, e eu e a Dora, no lodo, já todas enterradas até aos joelhos!
Desistimos de continuar... Vamos pelo caminho cada vez mais longe da linha.
Entretanto, a Julieta liga-nos e diz-nos que aquela linha não é para prospectar!!
Decidimos ir prospectar linhas na Figueira da Foz.
Na foz do rio Mondego, o rio divide-se em dois braços, rodeando uma ilha de aluvião – a Ilha da Morraceira – que compreende sapais, salinas e mais recentemente aquaculturas. Esta zona possui um grande valor para as aves limícolas, como o alfaiate, o pernilongo e a andorinha-do-mar-anã, e ainda para espécies como o flamingo, a garça-vermelha, o pisco-de-peito-azul, a águia-pesqueira e a águia-sapeira ou também chamada tartaranhão-ruivo-dos-pauis.
Denota-se o abandono de algumas salinas e a transformação de outras em aquaculturas, o que produz uma perda irreversível de habitat de alimentação e locais de nidificação das limícolas.
Além disso regista-se alguma caça furtiva tanto a limícolas como a flamingos.
Enquanto prospectavam a linha, a Julieta e a Rosário queriam encontrar caminho para chegarem junto de um apoio. Atravessaram um portão. Havia uma bifurcação, com uma casa ao fundo e alguns carros parados. Não ligaram e tomaram o outro caminho. Quando voltaram para trás, tinham o portão fechado a cadeado!
Ficaram surpreendidas. Dirigiram-se à casa para perguntar o caminho de saída.
Iam sendo mortas pelos piscicultores irritados!, que ainda tiveram a lata de dizer que a situação só não era pior porque eram mulheres!
Julgo que as teriam espancado!
Já noite, voltámos a Aveiro. Ao jantar, numa Pizzaria, servem-me o sumo já no copo, e a água da Rosário já aberta!! Sou por demais minuciosa com as regras básicas da restauração! Quase fui aos arames!
Mas decido fazer a coisa pela calma e educação, na esperança que a gerência tomasse o meu reparo como uma mais-valia. Qual quê?
Já fazemos isto há mais de 20 anos, sempre fizemos assim, e vamos continuar a fazer!!
Hoje, apesar de ser quinta-feira não ouvimos tiros dos caçadores, porque ali, só pesca!
E caça só se a Julieta e a Rosário fossem homens!
Próximo episódio, amanhã, das 7h às 17h!

27 Nov. 09:
Depois do jantar de ontem, ainda fomos a casa do João para nos dar os mapas das linhas correctas a prospectar!
O pequeno-almoço foram padas com manteiga, um tipo de pão típico da região.
Partimos para Vagos, para prospectar uma linha até Sôsa.
Eu e a Dora iniciamos o passo entre silvas e tojos à nossa altura!
A Julieta e a Rosário seguem para iniciar num outro ponto.
No fim de ultrapassarmos o matagal todo, eu e a Dora começamos a descer uma pequena encosta. Ao fundo vemos a Julieta e a Rosário com a carrinha atascada na lama!
Vamos ajudá-las. Pomos pedras, paus, redutoras, empoleiramo-nos as 3 na parte de trás enquanto a Dora tenta desesperadamente mover a carrinha de sítio...
Sem sucesso...
Decidimos ligar para o 112, que nos diz que temos de ligar para a Assistência em Viagem.
Ligamos e dizem que vão mandar um reboque.
Eu e a Dora continuamos a prospectar a linha, para não dar mais um dia como perdido!! Elas ficam a aguardar ajuda.
Um pouco antes do apoio 34 encontramos penas de rola-turca. Fotografamos, recolhemos tudo para um saco, que identificamos, preenchemos a ficha de campo e tiramos o ponto GPS.
No final, as meninas ainda não tinham dado sinal. Continuavam à espera que alguém as socorresse!! a assistência em viagem tinha enviado um carro que não conseguiu rebocar a carrinha. O 112 dizia não poder ajudar, os bombeiros diziam não fazer o serviço e a protecção civil iria cobrar pelo socorro uma quantia estupidamente elevada!, mas que nem disse qual era! Restou-lhes encontrar um proprietário com um mini-tractor, mas com a potência suficiente para as tirar de lá!!
No fim de mais uma aventura, almoçámos numa terra chamada Oiã.
No fim, andámos mais de meia hora às voltas para encontrar o Eixo! Dito assim parece gozo, mas não! É mesmo o nome do próximo local a prospectar. E diga-se que até lá, outros nomes havia como Palhaça e Nariz!
No fim lá encontrámos a linha. Situa-se numa zona onde existem muitos jacintos-de-água (Eichhornia crassipes). A sua introdução e expansão está a afectar o equilíbrio da vegetação natural ao longo das numerosas valas e a reduzir a área de água exposta.
Não encontrámos qualquer cadáver ou outro vestígio. Houve contudo um momento insólito, em que ao chegarmos perto de um apoio, um cão que ali dormia, desata a fugir de nós com um medo de morte! Isso é que ele correu!! Até nunca mais parar! Tal foi o medo! Ou somos de facto assustadoras, com as nossas galochas, casacos, binóculos, máquinas fotográficas e afins, ou o cão sofria de maus tratos humanos!
Ao regresso à Pousada, passamos por uma terra em que havia um lar chamado Lar dos Afectos! Eu e a minha companheira de riso, começamos logo a dizer que quando formos velhinhas queremos ir para um destes!! E até lá, aceitamos Afectos de “idosos” com não mais de 3 rugas faciais, menos de 2 peles penduradas, sem bicos de papagaio e por aí fora!!

28 Nov. 09:
A ria de Aveiro é uma das zonas húmidas mais extensas de Portugal com águas estuarinas, sapais e salinas, importante para muitas espécies de aves aquáticas, como a garça-vermelha, a águia-sapeira, a garça-pequena, e as limícolas: pilrito-de-peito-preto, alfaiate, pernilongo, borrelho-de-coleira-interrompida, borrelho-grande-de-coleira e andorinha-do-mar-anã.
A dragagem do canal que conduz à barra tem vindo a aumentar o caudal de água e a amplitude de marés no sistema lagunar, provocando erosão dos sedimentos e impacto na disponibilidade de alimento das aves. Outras ameaças são a introdução de espécies exóticas como a acácia, a aquacultura e a construção de diques e barragens.
8h10 e já estamos a prospectar uma linha entre Bunheiro e Pardilhó.
Às 9h30 começa a chover. Até agora tem sido sempre assim: só apanhamos chuva no último dia de campo.
Tínhamos combinado prospectar do apoio 39 até ao meio, local onde a Julieta nos deixaria a carrinha, para daí até ao apoio 26 prospectar ela e a Rosário, e eu e a Dora as irmos apanhar no fim.
Andámos, andámos e nada da carrinha. Entretanto já estávamos no apoio 27, quando percebemos que elas estavam no 26 e tínhamos prospectados os mesmos apoios!
No fim, voltámos todas para trás e elas já não conseguiam encontrar o local onde tinham deixado a carrinha!!
Foi mais de meia hora, a pé, às voltas, aldeia acima, aldeia abaixo. Valeu-nos o nosso amigo GPS que tinha um ponto marcado no inicio da linha.
A saga de facto não pára!
Entretanto outro voluntário junta-se a nós – o Nuno Antunes - e antes de almoço ainda prospectamos mais uma linha.
Enquanto elas fazem um troço, eu e o Nuno fazemos outro em que saltamos vedações eléctricas, prospectamos no meio de bovinos e somos interceptados por fazendeiros desconfiados!
A tarde inicia-se com mais uma série de “As voltas”, mas desta vez tínhamos um verdadeiro upgrade em termos tecnológicos: o Nuno trazia um smartphone com Google Earth e GPS integrado que nos dizia exactamente onde estávamos.
Estava mais que contratado!!
Qual voluntário, qual quê!
A linha que a Dora e o Nuno fizeram tinha inúmeras derivações e na parte final muitos quintais e casas que tiveram de ser considerados improspectáveis a fim de não voltarmos a ter mais uma peixeirada como a dos piscicultores.
Eu e a Rosário, no nosso troço, encontrámos logo penas e ossos junto a um apoio, e mais umas penas junto a outro apoio.
Próximos episódios, numa novela perto de si!
Não perca!

De Braga a Bragança

Narrado por Carla Veríssimo, com os contributos de Julieta Costa e Dora Querido. Fotos de Carla Veríssimo

16 Nov. 09:
11 horas: saímos de Leiria.
Paramos na estação de serviço de Ovar e almoçamos na cafetaria SOL, cujo slogan é: SOL na sua viagem. Ironicamente, o dia estava chuvoso. Mas vamos ver o que o S. Pedro nos reservou desta vez, para o resto da semana!
Na primeira semana só tínhamos apanhado umas pinguitas de chuva no último dia, e apenas na parte da manhã.
Paramos em Braga na sede do Parque Nacional da Peneda-Gerês, para falar com o técnico Miguel Pimenta.
Só para lá chegar, foram voltas e voltas na cidade. E no fim, voltas e voltas para encontrar a saída! Isto porque placas com indicações só existem as primeiras. A partir daí, podem existir várias direcções, caminhos, estradas, saídas, que não há mais placas!! É o país que temos!!
Salve-se quem puder!
O mais caricato foi quando pedimos indicações a um senhor, e ele começa: Segue esta estrada, vão encontrar um corte à direita, não vira, segue, segue, depois encontra um cruzamento, não liga, segue, segue, …Eu não aguentei e desatei a rir!, mesmo na cara do homem!
Mas por fim lá chegámos ao Campo do Gerês, por volta das 17h30.
Instalámo-nos na Pousada da Juventude.
Chove e está frio, mas os quartos estão quentinhos. As camas estão por fazer, mas não faz mal, por 11 euros a noite não se pode ter tudo! Depois de jantarmos uns hambúrgueres congelados e demasiado cozinhados numa cantina fria e desaconchegante, a Dora achou por bem ir tomar banho. Qual não foi o nosso espanto quando ela voltou desolada: Os chuveiros são fixos e só têm água fria. Mas nos lavatórios, há água morna!Baralhados? Nós também…
Não ficamos muito contentes e ansiamos pelo dia seguinte para nos lavarmos bem lavadinhas!

17 Nov. 09:
Já não chove. Saímos da Pousada.
Não tomamos pequeno-almoço, pois só o servem entre as 8 e as 10 horas, e temos de aproveitar as horas de luz ao máximo, já que fica de noite às 5 da tarde.
Assim, a ideia é prospectar uma linha até às 9h30 e depois voltar à Pousada para tomar o pequeno-almoço.
Dirigimo-nos a Covide, em busca da linha que queremos prospectar.
Encontramos uma, mas que não era da tipologia que queríamos.
Era uma GAN (Galhardete para Ângulo) e nós queríamos uma TAL (Triângulo para Alinhamento).
Depois de algumas voltas na aldeia e redondezas, vemos uma TAL, mas que atravessava a floresta, e por isso torna-se complicado de prospectar.
Decidimos então voltar atrás, ao Campo do Gerês, onde acabamos por encontrar uma TAL para fazer, na zona de Veiga do Campo.
Saímos da carrinha e deparamo-nos com a porta da caixa aberta. Entreolhamo-nos intrigadas e dou por falta do meu saco-cama. Deve ter caído quando a porta se abriu... Procuramos à volta e no caminho de terra que tínhamos feito deste a estrada e nada…
São 8 da manhã. Decidimos iniciar a prospecção e no final ir em busca do saco perdido!
Eu e Dora começamos então no apoio 24. A Julieta vai iniciar noutro ponto da linha.
O dia estava frio, mas soalheiro e os campos ainda com algum orvalho gelado.
A paisagem é de uma beleza ímpar, pouco ou nada humanizada. Estamos num dos últimos redutos do país com ecossistemas no seu estado natural. Há imensos granitos e água por todo o lado. Em riachos, ribeiros, a escorrer rochas abaixo, no solo, sob o mato. É tanta, que podiam exportá-la para o Alentejo! Faziam um bom dinheiro!
Enchemos as garrafas com ela. Sabe mesmo a água mineral. É pura, fresca, leve e fria.
A floresta é dominada por carvalhos, mas existem também medronheiros, azevinho, pinheiros, azereiros e bétulas.
Estes bosques de folhosas e coníferas são propícios à existência de vários cogumelos do género Amanita. E de facto vemos vários Amanita muscaria, uma espécie venenosa, também conhecida por mata-bois, mata-moscas ou casca de laranja. A Dora chamou-lhes Casa dos Estrunfes, mas eu não sabia que os Estrunfes tinham casas!
Atravessamos matos arbustivos densos e altos, com urzes, giestas e tojos. Apesar de serem difíceis de transpor e de sentir constantemente o meu corpo, o casaco e os binóculos a roçarem neles, mantenho os binóculos a tira-colo, de modo a facilitar a rápida observação de aves que possam aparecer, de repente, nos céus.
Sendo este o principal local do país onde ocorrem o picanço-de-dorso-ruivo e a sombria, não conseguimos ver nenhum dos dois.
Observamos apenas alguns piscos-de-peito-ruivo, apesar deste sítio ser ainda rico em espécies como a águia-real, a águia-cobreira, o tartaranhão-cinzento, o tartaranhão-caçador, o falcão-peregrino, o falcão-abelheiro, o bufo-real e a gralha-de-bico-vermelha.
Quando entro na carrinha reparo que perdi um parafuso dos binóculos... Como se não bastasse o saco-cama, agora mais esta! Arrependo-me de não ter posto os binóculos para dentro do casaco, pelo menos nas partes mais difíceis do transepto...
Fazemos novamente o mesmo percurso da manhã, desta vez em sentido contrário. Vamos até Covide, mas nada. Perguntamos às pessoas, e nem sinais do saco-cama!
Damo-lo como perdido! É oficial!
Seguimos para Travassos, perto de Montalegre. Quando chegamos à aldeia, paramos a carrinha para olhar para os mapas.
Uma velhota, toda vestida de preto, lenço na cabeça e botas de borracha, andava por ali com uma gadanha, de volta de umas ervas.
Desconfiada e intrigada olha várias vezes para nós e para a carrinha. E eis senão quando se dirige a nós, de gadanha ao ombro!
Fica algum tempo a olhar para os símbolos e letras da carrinha, e depois olha para dentro da carrinha. Pensamos que vai perguntar qualquer coisa, mas ela olha novamente para a carrinha. Parece não perceber o que lê e olha para novamente para nós dentro da carrinha. A Julieta abre a janela e explica quem somos:
Sim, isso eu li aqui: Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves. Mas o que andam a fazer? A Julieta explica o projecto.
Ah! É que a gente gosta de saber o que andam a fazer na nossa terra. Uma pessoa não conhece… Se fossem homens não vinha perguntar que tinha medo, mas como eram... são meninas... são meninas ou são senhoras?... Não fosse o facto de estarmos dentro do carro, num cruzamento espaçoso e cheio de visibilidade, num dia solarengo e eu queria ver quem é que tinha medo de quem! Uma senhora que podia muito bem representar qualquer personificação da morte, tinha medo de se aproximar de homens desconhecidos. Simplesmente, pitoresco…
Este foi sem dúvida um dos momentos mais deliciosos desta viagem, mas haverá mais…
Às 15h30 iniciamos no apoio 55 de uma linha TAN não corrigida de 30 kV.
Eu e a Dora prospectamos 1 km e a Julieta outro.
Não encontramos aves mortas, nem vestígios.
Deixamos Montalegre e vamos dormir a Castro Laboreiro. Temos as botas de campo molhadas e está muito frio. Dirigimo-nos a uma Residencial. O senhor diz-nos que o esquentador está avariado e a ser reparado naquele exacto momento, mas não sabe quanto tempo demorará, pelo que não pode assegurar que tenhamos água quente!! Que sina a nossa!
Decidimos procurar outra residencial.
A pergunta, aparentemente ridícula, impunha-se: Tem água quente?
Sim, disse o senhor.
E aquecedor?
Estupefacto, responde: Aquecedor para quê? Bate sol o dia todo no quarto!
Na primeira semana, em Figueira de Castelo Rodrigo, já tínhamos notado, pelas águas frescas que nos teimavam em servir, que as pessoas nunca tinham frio, e por aqui, vai tudo pelo mesmo caminho! O inverno ainda não tinha chegado a estas paragens…
Pensámos a melhor forma de voltar a abordar o assunto com o senhor, e lá lhe perguntámos se era possível pôr-nos um aquecedor no quarto porque tínhamos as botas molhadas e precisávamos delas secas para o dia seguinte.
Anuiu.
Quando chegámos ao quarto, percebemos que já havia aquecimento central, mas ele só o ligou depois de falarmos!

18 Nov. 09:
Madrugamos como habitualmente. Mal saímos a porta sente-se o frio na cara. A primeira peripécia do dia é descongelar o vidro da frente da carrinha!
A Dora com uma escova esfrega o vidro ao mesmo tempo que deixa cair alguma água para descongelar a camada de gelo.
A Julieta liga o motor e o desembaciador.
Passado algum tempo lá conseguimos fazer-nos à estrada em segurança!
Prospectamos uma linha entre Lamas de Mouro e Castro Laboreiro.
Está tudo branco! Os campos estão cobertos por um manto de geada. O sol espreita tímido por entre umas nuvens baixas e as poças na beira dos caminhos tem gelo a flutuar.
Os lameiros estão cheios de água. As botas que ainda nem tinham recuperado da molha anterior já estão encharcadas de novo...
Encontramos penas congeladas (tal era o gelo!) que julgamos de milhafre-real, junto a um apoio, e penas que julgamos de águia-cobreira, junto a outro.
12h20: deixamos Castro Laboreiro e seguimos em direcção a Paradela.
Ao chegarmos a uma pequena aldeia chamada Gavieira, a Dora e a Julieta decidem perguntar a dois bêbados o caminho para Tibo e Adrão!!
O bafo deles até chegou à parte de trás da carrinha, onde eu ia sentada!
Antes de seguirmos concordamos em almoçar por ali. Entramos às 14h30 e já não havia nada para almoçar. Arranjaram-nos umas sandes de presunto e queijo. De comer e chorar por mais!
Quando terminamos e nos dirigimos à carrinha, reparo numa pequena loja com as seguintes palavras, escritas à mão, a azul, na parede:
PADEIRO DE ROUÇAS
PADARIA – MERCEARIA
E
VINHOS
REPARAÇÃO AO ESTÔMAGO
E
LAVAGEM AOS INTESTINOS

e uma seta a apontar para a porta da loja, não vá o transeunte não perceber!
Nem comento!
Fotografo apenas! É digno de ficar para a posteridade!
Entramos na carrinha e seguimos. Tibo e Adrão ficam de lado. Decidimos procurar uma linha entre Várzea e Paradela.
Andamos, andamos, voltas e mais voltas, já estamos junto à Barragem do Lindoso quando decidimos perguntar novamente informações sobre como encontrar o nosso destino.
Afinal, já tínhamos passado por Paradela e nem tínhamos reparado!
Finalmente encontramos um apoio onde iniciar a prospecção!
São 16 horas. Já não temos muito tempo até que escureça.
Ali logo, no apoio 13, deparamo-nos com penas e ossos. Marcamos o ponto 203 no GPS.
Terminamos já noite e pomo-nos a caminho de Bragança.
Assim como ontem, hoje também não choveu enquanto andámos no campo.
Quando chegamos, as indicações continuam a ser do melhor e mais uma vez demoramos algum tempo a encontrar a Pousada da Juventude.
Jantamos no BragançaShopping!
Volta a tornar-se estranha a passagem do campo para a civilização! Novamente, personagens da era medieval tele-transportadas para o futuro. Mas pelo menos está quentinho!

Em busca do Vale Encaixado

Narrado por Carla Veríssimo, com os contributos de Julieta Costa, João Neves e Dora Querido. Fotos de João Neves e Carla Veríssimo

02 Nov. 2009:
8h40 da manhã já a carrinha da SPEA está em 4 piscas na Rotunda do D. Dinis, em Leiria.
Levava imensas coisas comigo, sempre com medo de que seja preciso mais aquelas calças, toalhas, mais o saco-cama, enfim.
A Julieta e a Dora são obrigadas a tentar, mais uma vez, abrir a porta de trás da carrinha.
Em Lisboa não tinham conseguido. Depois de algumas voltas a Dora lá consegue.
Enfiamos tudo lá atrás e seguimos viagem até Albergaria-a-Velha, onde o João se junta a nós.
São 11 da manhã. Seguimos até Vila Nova de Foz Côa, onde chegamos por volta das 13h30.
Almoçámos no Dallas!!!!!!! No fim das favas, do bacalhau à Brás e do borrego, seguimos para Figueira de Castelo Rodrigo.
Quando chegámos, fomos até à zona da Barragem de Santa Maria de Aguiar, aproveitar as últimas horas de luz, para o João nos ensinar como prospectar uma linha eléctrica.
Estamos a colaborar num Projecto que pretende determinar o impacte das linhas eléctricas de média e alta tensão na avifauna em Portugal.
Os troços a prospectar foram seleccionados dentro de Áreas Protegidas, Zonas de Protecção Especial para Aves (ZPE's) e IBA's (Important Bird Areas).
Cada troço deverá ser visitado pelo menos uma vez em 4 períodos do ciclo anual de vida das aves: Invernada (Dezembro – Janeiro); Reprodução (Março – Abril); Dispersão Pós-Reprodutora (Maio – Julho) e Migração (Setembro – Outubro).
Cada elemento da equipa segue a uma distância de 5 m da projecção da linha no solo, de forma a prospectar 10 m de linha de cada lado.
De olhos postos no chão, procuramos atentamente qualquer vestígio de aves, que possam ter colidido com a linha, ou morrido electrocutadas.
As prospecções ao longo do vão (distância entre dois apoios) são importantes para detectar as colisões e as prospecções junto aos apoios para detectar electrocussões.
Não é muito fácil habituar os olhos a descobrir penas, ossos ou mesmo aves inteiras num solo onde tudo está mimetizado, onde ossos se confundem com pedras, onde penas se confundem com paus, onde no meio de todos aqueles castanhos, verdes, amarelos, dourados, pode estar um bicho inteiro, ali mesmo ao nosso lado, que não o vemos, se não olharmos cuidadosamente.
De repente o João chama-nos. Estava junto a um apoio, um nome mais técnico dado aos conhecidos postes das linhas eléctricas.
Havia um osso. Um osso apenas. Um úmero.
O João explicou-nos que devíamos fazer círculos em volta de cada apoio, para prospectar cuidadosamente em busca de outros indícios que nos pudessem dar mais pistas sobre o sucedido.
Prospectar à volta dos apoio é importante para detectar possíveis electrocussões, e prospectar ao longo do vão, importante para as colisões.
De cada vez que encontramos vestígios, devemos também fazer círculos em redor, em busca de mais, já que o cadáver pode estar espalhado, devido ao vento, à passagem de animais, ao cultivo da terra ou mesmo à predação.
Demos voltas e voltas e nada, até que novamente o João, se debruça no chão junto a um amontoado de pequenos ossos, falanges, uma garra, e mais uns quantos.
Foi aí que percebemos o quanto o nosso olhar devia ser atento. Entre vestígios, palpites, hipóteses e luvas de laboratório nas mãos, aquilo parecia um autêntico CSI.
Colocámos os ossos dentro de um saco, devidamente identificado com a data, o local e o nome da espécie que julgamos ter encontrado.
Julgamos que o úmero é de cegonha, mas sem certeza. Teremos de confirmar mais tarde.
Preenchemos, paralelamente, uma ficha de campo com outros dados como:
1)coordenadas GPS;
2)a voltagem da linha (a tensão de uma linha pode ser deduzida pelo número de discos isoladores das amarrações. Cada disco isola aproximadamente 15 kV, aplicando-se mais um disco de segurança, ou seja, numa linha de 30 kV existem 3 discos isoladores. As excepções dão-se quando a linha passa junto a uma estrada ou junto a residências, em que existem 2 ou mais discos de segurança);
3)a composição do apoio (madeira, metal, betão);
4)o tipo de armação da linha (TAL - Triângulo para Alinhamento; TAN - Triângulo para Ângulo; GAL – Galhardete para Alinhamento; GAN - Galhardete para Ângulo; CAL – Canadiana para Alinhamento; CAN – Canadiana para Ângulo);
5)o tipo de isoladores (isoladores rígidos na vertical, na horizontal, em suspensão);
6)a espécie de ave (todos os cadáveres ou seus restos devem ser identificados individualmente segundo taxonomia);
7)a causa da morte (sempre que for possível, devemos olhar para indícios no cadáver que nos permitam concluir se a ave morreu por colisão ou por electrocussão);
8)a data da morte (“1-2 dias” - a ave não apresenta sinais de decomposição; “1 semana” – são visíveis larvas de insecto em desenvolvimento; “1 mês” – porção considerável de tecido ósseo exposto; “Mais de 1 mês” – praticamente só tecido ósseo e sem actividade de larvas de insecto);
9)o habitat do troço e o habitat junto do cadáver;
10)a distância do cadáver ao apoio e à linha;
11)o número do apoio (marcados na base, pintados na lateral do apoio, inscritos numa placa metálica, ou não existentes de todo! E neste caso, salva-nos saber que a numeração de uma linha começa num seccionador e acaba num posto de transformação, sendo que vai aumentando do primeiro para o segundo).
Por volta das 17h começa a escurecer e torna-se difícil prospectar. Decidimos ir instalar-nos no Hotel em Figueira de Castelo Rodrigo.
Jantamos num restaurante tipicamente regional, onde fomos recebidos com simpatia e graciosidade.
Quando voltamos ao Hotel ainda ligamos os computadores e planeamos o dia seguinte.

03 Nov. 09:
A Julieta é a primeira a sair da cama.
O despertador do telemóvel dela deve ter tocado, e eu apesar de dormir numa cama mesmo encostada à dela, não o ouço...
São 6 da manhã.
No meu sono, começo a ouvir muito ao longe, muito ao leve, água a correr na banheira. Ganho consciência que ela está no banho, mas continuo a dormir os meus últimos minutos.
E já tinha adormecido completamente, quando um som toca ao fundo. É um som calmo, que dá prazer, nada a ver com a maioria dos despertadores de telemóvel.
Vem da cama da Dora, encostada à outra parede do quarto. Partilhamos um triplo.
São 6h30 da manhã.
A Julieta sai da casa de banho e a Dora começa lentamente a vestir-se.
Eu continuo no confortável calor dos lençóis até às 6h45, depois salto num ápice e visto-me.
Entretanto apercebo-me da Julieta com um problema no olho. Tinha colocado a lente de contacto da Dora, no seu olho esquerdo. Mas o problema nem era ter colocado uma lente que não era sua, mas sim, ter confundido também os frascos do líquido das lentes, e ao invés de pôr o seu, ter posto o líquido, ácido, que a Dora usa para as lentes dela!

O olho estava completamente inchado, vermelho, a lacrimejar, conseguia sentir o ardor, o tremer, a sensação horrível que provocava uma simples gota de ácido na córnea.
Uma vez saltou-me lixívia para o olho... O que a Julieta estava a sentir naquele momento, seria muito semelhante...
Nem conseguia abrir o olho, mas na sua garra, lá fomos tomar o pequeno almoço todos juntos, seguindo para a Vermiosa, logo de seguida.
Nesta pequena aldeia, nas proximidades de Figueira, iríamos prospectar 4 km de linha corrigida, ou seja, que já tinha sido prospectada previamente e que se tinha considerado perigosa para as aves, pelo que no seguimento de um protocolo entre a SPEA, a QUERCUS, o ICN e a EDP, foi protegida com umas mangas em PVC, junto aos apoios, para diminuir a probabilidade das aves morrerem electrocutadas, e foram colocados uns sinalizadores ao longo da linha, chamados salva-pássaros ou espirais de sinalização para tornar a linha mais visível e evitar mortes por colisão.
Trabalhamos em par, para maximizar o trabalho. Cada equipa tem de levar um walkie-talkie, para comunicar com a outra, sempre que necessário. Também não se pode esquecer do GPS, importante, por exemplo, para saber quantos quilómetros prospectamos, ou para marcar pontos, quando encontramos vestígios ou a ave morta, por inteiro.
Enquanto duas pessoas começam a prospectar uma linha eléctrica, em busca de vestígios (penas e/ou ossos) de aves mortas, os outros dois seguem com a carrinha até um ponto em que a linha cruze com alguma estrada ou caminho, para lá deixarem a carrinha, e prospectarem daí em diante.
Os primeiros, quando chegam à carrinha, seguem nela e vão buscar os segundos, que estarão a terminar a sua monitorização.
Faço equipa com o João, encontramos penas de pega-azul e de gralha.
Mais à frente, ao passar na zona de uma vinha, deparo-me com um amontoado de ossos. Chamo logo o João, que já ia mais à frente.
Começamos a juntar todos os ossos e a procurar mais vestígios à volta. Não encontramos mais nada. O João acha que são ossos de pombo.
Pomos tudo num saco, etiquetamos, preenchemos a ficha, tiramos o ponto GPS e seguimos.
Até terminar esse troço, não encontramos mais nada.
Fazemos então uma pausa para almoço. À tarde retomamos, eu e o João, novamente, e a Dora e a Julieta.
Pouco depois de eu e o João nos metermos ao caminho, ele chama-me logo para ver o que tinha encontrado. Penas e ossos de uma águia-cobreira, nas proximidades de um apoio.
A ráquis da pena é inteiramente branca, e a própria pena é branca por baixo e castanho-escura por cima. No fim do procedimento habitual: saco, etiqueta, ficha, ponto GPS, seguimos.
Encontramos mais uns ossos, numa zona queimada da orla da floresta, que não conseguimos identificar e por isso procedemos do mesmo modo, levando tudo connosco, para mais tarde ir à Osteoteca do IGESPAR, IP (Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico, Instituto Público), para consultar a sua colecção de ossos.
De repente toca o walkie-talkie. A Dora pergunta onde estamos. O João diz-lhe que estamos parados porque encontrámos mais uns bichos.
A Dora espicaça do outro lado:
Mas vocês encontram tudo?!
E claro que o João não deixa a coisa por menos e sai-se logo com um:
Pudera, nós temos 4 olhos, e vocês só têm 3!! (Dois da Dora mais um da Julieta!)
Passados alguns apoios, vejo uma pena no chão. Baixo-me ao mesmo tempo que digo para o João: Está aqui uma pena. Lanço o olhar à periferia e digo: Aqui está outra. Olha, e aqui outra, e aqui! De repente, ergo-me e vejo muitas penas, todas espalhadas por todo o lado!
Eram de um tordo. Sem os seus ossos fica difícil identificar a causa da sua morte, contudo, conseguimos perceber que tinha sido predado por um mamífero, pela ráquis das penas toda roída.
No caso da predação por aves, a ráquis mantêm-se inteira e poderá por vezes apresentar um vinco na base.
Até ao fim desse troço de linha encontramos ainda mais umas penas de pombo-torcaz e de estorninho.
Está a começar a escurecer.
Voltamos a Figueira. A Julieta, que a meio da manhã já tinha ido à Farmácia, consegue ao início da noite, uma consulta no médico da Óptica. Dá-lhe medicamentos e uns pensos para tapar o olho. Parece mesmo um Pirata!
Durante o dia, houve ainda tempo para falar com o António Monteiro, Biólogo do Parque Natural do Douro Internacional, que observou o úmero encontrado no dia anterior e disse ser de um grifo.

04 Nov. 09:
Depois do ritual da Dora e da Julieta, saio ao último minuto do quentinho da cama.
Toca a vestir!
Binóculos e máquina fotográfica a tira-colo; bolsa à cintura para lápis, borracha, afia, caderno de notas, post-it, marcadores, garrafa de água, telemóvel, sacos de plástico grandes e pequenos, luvas de laboratório, e luvas sem dedos, enfiadas nas mãos, que o frio lá fora, é mais que muito!
Descemos as escadas de madeira do Hotel e acho que devemos acordar toda a gente com o barulho das botas de campo, degraus abaixo.
Juntamo-nos ao João para o pequeno-almoço, onde delineamos o dia, de um modo geral.
8h30 da manhã, a máquina dispara em direcção a uma águia-de-asa-redonda, pousada num rochedo.
Eu e a Dora começamos a prospectar uma linha entre Mata de Lobos e Escalhão.
Passados poucos apoios, deparamo-nos logo com alguns ossos, que após um olhar mais atento vão sendo cada vez mais. Fotografamos de imediato o achado para ter uma visão de como encontrámos os vestígios no terreno, e de seguida juntamos todos os ossos e penas para mais umas fotografias antes de etiquetar e colocar dentro de um saco.
Mais umas penas de gralha, outra de peneireiro mais à frente e outros dois amontoados de ossos e penas de águia-de-asa-redonda, separados por um metro de distância, estas também com indícios de predação por mamífero.
Entretanto somos sobrevoadas por uns 6 grifos. Ficaríamos ali o dia todo a vê-los aproveitar as correntes térmicas, com as suas imponentes envergaduras, mas temos de continuar.
No final, juntamo-nos ao João e à Julieta para almoçar, num restaurante em Escalhão.
No fim do almoço entramos na carrinha e tínhamos já o motor a trabalhar, quando o senhor do restaurante, do lado de fora da janela:
Desculpem, os senhores pediram-me a factura, pelo menos paguem-me o almoço!...
E nós muito embaraçados:
Ah, pois foi..... Desculpe, foi sem querer....
Por distracção, entre o tirar e guardar cartões, talões e número de contribuinte, guardámos a factura e nada de dar o dinheiro ao senhor!! Que vergonha.... Lá foi a Julieta pagar o almoço ao senhor.
À tarde, faço equipa com o João, num troço de 1 km de linha. Só encontramos ossos de mamífero e penas de um chasco.
É muito normal encontrarmos ossos de mamíferos. Nesses casos, afastamo-los da zona a prospectar, para não haver confusões numa próxima monitorização.
Entretanto chegam a Dora e a Julieta da prospecção delas e passamos para outra linha. Aí, faço equipa com a Julieta, numa linha não corrigida, de 30 kV.
A paisagem é fantástica, quando estamos nos pontos mais altos, avista-se ao longe, lá ao fundo, um rio, é o Águeda.
As escarpas encaixadas são de uma imponência magnífica.
Por isso as aves rupícolas gostam de viver ali. Sobrevoar aqueles vales, pousar nos apoios mais altos das serras.
Ao subir uma encosta encontramos uma toutinegra-de-barrete. É um macho, pois denota-se perfeitamente o barrete preto. Apresenta sinais de decomposição na barriga. Deve ter morrido há uma semana, tem larvas de insecto em desenvolvimento.
Está a meio do vão, mesmo por baixo da linha eléctrica. Percebemos claramente que morreu por colisão.
Mais à frente, outra ave inteira, mas nada que se pareça com os 14 cm da toutinegra.
É um grifo. Inteiro. Enorme. 95 a 105 cm de comprimento, 230 a 265 cm de envergadura de asas.
Está caído a uns 5 metros do apoio, de barriga para cima, asas ligeiramente abertas e cabeça para o lado.
Tem sinais de decomposição nas asas, na cabeça e nas patas.
Deve ter morrido há 2, 3 semanas, talvez electrocutado no apoio.
Temos de o deixar ali e voltar no dia seguinte para recolhê-lo, pois não temos sacos grandes o suficiente para o colocarmos inteiro.

05 Nov. 09:
De manhã bem cedo eu e a Julieta deixamos o João e a Dora a prospectar uma linha em Freixeda do Torrão, e vamos buscar o grifo encontrado no dia anterior.
Já tínhamos falado com o António Monteiro, que nos autorizou a deixá-lo na arca congeladora da sede do Parque Natural.
A Julieta aproveita para parar na zona de uma vinha, onde julga poder estar o seu GPS, que entretanto tinha desaparecido. Gatinhamos debaixo das vides, tubos e arames e nada. Vamos ao encontro do João e da Dora, que já tinham acabado a prospecção, e dividimo-nos novamente em duas equipas.
Eu e o João encontramos apenas umas penas de pega-azul.
Mas depois, bem vivos, ao longo do percurso vemos alvéolas, poupas, um picanço-real e cotovias. Vemos também imensos cogumelos, de várias cores e tamanhos.
E ouvimos tiros. É quinta-feira, dia de caça.
Depois do almoço, novamente no Restaurante do costume, para não variar!, faço par com a Julieta. Encontramos vários ossos e várias penas de águia-cobreira, escondidas numa fresta de uma rocha.
Ao fim da tarde, deixamos Figueira de Castelo Rodrigo e partimos em direcção a Mogadouro. Instalamo-nos numa Residencial.
A Dora começa a desenvolver uma teoria acerca da decoração do sítio...
É um edifício de vários andares, com aspecto de casa particular. Os degraus das escadas são irregulares. Não existe elevador. O quarto é frio. Mal chegamos pedimos logo à senhora para ligar o ar condicionado, que nunca chegámos a entender como funcionava.
Os azulejos, os toalheiros, as cortinas da banheira com as iniciais da Residencial bordadas, enfim, tudo fora requintadamente decorado, como se tivesse sido escolhido a dedo, com muito gosto... Infelizmente o resultado final era simplesmente piroso!
Mas depois com esse “bom gosto” não se coadunavam as portas perras, velhas, sem óleo, a canalização velha, que a água primeiro que escorresse banheira abaixo, era preciso esperar uns bons 10 minutos,... e as toalhas que pareciam hóstias, pois quase se desfaziam assim que nos limpávamos nelas.
Ainda assim, jantámos na Residencial.
Um lume falso numa espécie de salamandra, uma mesa de bilhar com padrão de mármore e um balcão que parece de bar de discoteca. Depois uma porta para a sala de jantar, um salão enorme, aliás, com mesas corridas, só para nós. O talher, um de cada nação, mas alguns garfos com uma filigrana em ouro!
Um ambiente familiar. Vieram à mesa servir-nos pelo menos 3 pessoas. Mais as duas criancinhas que andavam por ali a vaguear à roda da mesa. Éramos sem dúvida a atracção da noite!
Enquanto jantávamos, o João tentava ver o jogo de futebol do Benfica, mas a televisão tinha um péssimo sinal, as cores das camisolas estavam todas alteradas e só os comentários dos jornalistas deixavam perceber quem tinha a bola!!

06 Nov. 09:
Em Remondes, faço inicialmente par com a Dora.
Caminhamos entre folhas, bugalhos, matos, silvas, árvores e arbustos. Pulamos cercas, muros, arame farpado, subimos e descemos alguns rochedos, saltamos portões.
Encontramos penas de rapina e vemos um milhafre-real a voar ao fundo.
Assim que terminamos, faço equipa com o João noutro troço de linha, onde não encontramos quaisquer vestígios.
Almoçamos num café em Castro Vicente.
De tarde, eu e a Julieta prospectamos a última linha. Também não encontramos vestígios, mas vemos muitos cogumelos, bem vermelhos, são do género Amanita; vemos chapins, tentilhões e há muitos zimbros, tojos, giestas e roseiras-bravas.
O troço que temos de percorrer é difícil, o terreno muito acentuado, grandes subidas e descidas. Fico sem água. Ao passar junto aos terrenos de um agricultor que ali andava, junto às suas malhadas, decido pedir-lhe água. Ele levanta a mangueira do chão e enche-me a garrafa. A água sabia a terra e a malhadas de porcos...
No final do percurso, já estafada, de tanto descer e subir, a Julieta vira-se para mim e diz-me: Porque não tiras as calças impermeáveis?
E eu pensei... Sou mesmo loira... Sim, claro... já o devia ter feito há muito tempo...
Com todo aquele esforço, as minhas pernas pingavam... Nunca tinha suado das pernas. Aliás, quando faço exercício físico não costumo suar. Naquele fim de tarde, aquele esforço e aquelas calças impermeáveis a fazer sauna fizeram perder-me gotas de suor, como nunca antes.
Finalmente chegámos à carrinha. Pegámos nela e fomos buscar o João e a Dora, que estavam a terminar a última linha daquela semana.
No fim de identificarmos as penas e os ossos que faltavam e de fotografar o material que não íamos levar connosco, saímos finalmente de Castro Vicente, por volta das 18h. Seguimos pelo IP4 até ao Porto. Era eu que conduzia. É de facto, e como toda a gente sabe, uma estrada horrível. Estreita, com muitas curvas, muita inclinação. Não eram os avisos “Trave com o motor”, que me levavam a reduzir para quarta. Era eu própria que sentia um maior controlo sobre a carrinha, dessa forma.
Como se isso não bastasse, estava a chover.
Depois, ao longo da estrada, iam aparecendo saídas para várias localidades, umas localizadas em curvas, outras logo após uma ponte ou viaduto, tão escondidas, que só se viam mesmo em cima. Eu só pensava que se tivesse que sair para alguma delas, iria sentir-me atrapalhada.
Entretanto, na zona do Marão, um nevoeiro tão cerrado, tão cerrado, que o “trave com o motor” era quase “não ande”, porque tinha de ir em segunda. Sim, em segunda, para poder ver ou adivinhar um palmo que fosse à frente da carrinha!
Ainda por cima não havia carros à minha frente, para me poder refugiar nas suas luzes traseiras. Restava-me a minha boa visão, alguma imaginação, muita atenção, os reflectores da divisória central, alguns sinais de trânsito, que ainda assim, só via quando estava mesmo em cima deles, às vezes as luzes dos carros em sentido contrário, e a posição corcunda em que ia a conduzir, de forma a ver aquilo tudo!!!!!!
Devo ter conduzido naquelas condições durante uma boa hora. E a acrescentar ainda ia de bexiga completamente cheia...
Entretanto vejo uma placa a indicar um posto de abastecimento de combustíveis a 2 km.
Penso: Vou parar para ir à casa-de-banho.
Passado um pouco, uma placa indicava esse mesmo posto de abastecimento, a 1,5 km, na saída de outras localidades. Pensei: Não quero sair do IP4, vou esperar até que me apareça um posto aqui junto à estrada.
Vem nova placa, com nova indicação de 2 km, e depois indicação a 1,5 km, numa nova saída, desta vez para Vila Real.
Em conjunto com o João, decido sair. Percebo que o IP4 não é como uma auto-estrada, em que temos as estações de serviço, ali ao lado.
Saio então para Vila Real e vou à casa-de-banho de uma bomba de combustíveis.
Retomo a viagem, e por fim lá chegamos ao Porto.
Acabamos por jantar no Dolce Vitta.
Depois de um dia nos confins de Remondes e Castro Vicente, jantar num Centro Comercial, é quase como passar de uma casa para um palácio, mas na casa, enchemos muito mais o estômago, a alma e a vista!
As nossas indumentarias destoam completamente do ambiente que nos circunda assim como do local! Parece uma cena tirada de um filme em que os camponeses do passado são tele-transportados para o futuro…
A Julieta, a Dora e o João continuaram viagem para sul. O tempo ficou melhor, mas mesmo assim a estrada não encolhe e a viagem prolongou-se pela noite dentro.