De Braga a Bragança

Narrado por Carla Veríssimo, com os contributos de Julieta Costa e Dora Querido. Fotos de Carla Veríssimo

16 Nov. 09:
11 horas: saímos de Leiria.
Paramos na estação de serviço de Ovar e almoçamos na cafetaria SOL, cujo slogan é: SOL na sua viagem. Ironicamente, o dia estava chuvoso. Mas vamos ver o que o S. Pedro nos reservou desta vez, para o resto da semana!
Na primeira semana só tínhamos apanhado umas pinguitas de chuva no último dia, e apenas na parte da manhã.
Paramos em Braga na sede do Parque Nacional da Peneda-Gerês, para falar com o técnico Miguel Pimenta.
Só para lá chegar, foram voltas e voltas na cidade. E no fim, voltas e voltas para encontrar a saída! Isto porque placas com indicações só existem as primeiras. A partir daí, podem existir várias direcções, caminhos, estradas, saídas, que não há mais placas!! É o país que temos!!
Salve-se quem puder!
O mais caricato foi quando pedimos indicações a um senhor, e ele começa: Segue esta estrada, vão encontrar um corte à direita, não vira, segue, segue, depois encontra um cruzamento, não liga, segue, segue, …Eu não aguentei e desatei a rir!, mesmo na cara do homem!
Mas por fim lá chegámos ao Campo do Gerês, por volta das 17h30.
Instalámo-nos na Pousada da Juventude.
Chove e está frio, mas os quartos estão quentinhos. As camas estão por fazer, mas não faz mal, por 11 euros a noite não se pode ter tudo! Depois de jantarmos uns hambúrgueres congelados e demasiado cozinhados numa cantina fria e desaconchegante, a Dora achou por bem ir tomar banho. Qual não foi o nosso espanto quando ela voltou desolada: Os chuveiros são fixos e só têm água fria. Mas nos lavatórios, há água morna!Baralhados? Nós também…
Não ficamos muito contentes e ansiamos pelo dia seguinte para nos lavarmos bem lavadinhas!

17 Nov. 09:
Já não chove. Saímos da Pousada.
Não tomamos pequeno-almoço, pois só o servem entre as 8 e as 10 horas, e temos de aproveitar as horas de luz ao máximo, já que fica de noite às 5 da tarde.
Assim, a ideia é prospectar uma linha até às 9h30 e depois voltar à Pousada para tomar o pequeno-almoço.
Dirigimo-nos a Covide, em busca da linha que queremos prospectar.
Encontramos uma, mas que não era da tipologia que queríamos.
Era uma GAN (Galhardete para Ângulo) e nós queríamos uma TAL (Triângulo para Alinhamento).
Depois de algumas voltas na aldeia e redondezas, vemos uma TAL, mas que atravessava a floresta, e por isso torna-se complicado de prospectar.
Decidimos então voltar atrás, ao Campo do Gerês, onde acabamos por encontrar uma TAL para fazer, na zona de Veiga do Campo.
Saímos da carrinha e deparamo-nos com a porta da caixa aberta. Entreolhamo-nos intrigadas e dou por falta do meu saco-cama. Deve ter caído quando a porta se abriu... Procuramos à volta e no caminho de terra que tínhamos feito deste a estrada e nada…
São 8 da manhã. Decidimos iniciar a prospecção e no final ir em busca do saco perdido!
Eu e Dora começamos então no apoio 24. A Julieta vai iniciar noutro ponto da linha.
O dia estava frio, mas soalheiro e os campos ainda com algum orvalho gelado.
A paisagem é de uma beleza ímpar, pouco ou nada humanizada. Estamos num dos últimos redutos do país com ecossistemas no seu estado natural. Há imensos granitos e água por todo o lado. Em riachos, ribeiros, a escorrer rochas abaixo, no solo, sob o mato. É tanta, que podiam exportá-la para o Alentejo! Faziam um bom dinheiro!
Enchemos as garrafas com ela. Sabe mesmo a água mineral. É pura, fresca, leve e fria.
A floresta é dominada por carvalhos, mas existem também medronheiros, azevinho, pinheiros, azereiros e bétulas.
Estes bosques de folhosas e coníferas são propícios à existência de vários cogumelos do género Amanita. E de facto vemos vários Amanita muscaria, uma espécie venenosa, também conhecida por mata-bois, mata-moscas ou casca de laranja. A Dora chamou-lhes Casa dos Estrunfes, mas eu não sabia que os Estrunfes tinham casas!
Atravessamos matos arbustivos densos e altos, com urzes, giestas e tojos. Apesar de serem difíceis de transpor e de sentir constantemente o meu corpo, o casaco e os binóculos a roçarem neles, mantenho os binóculos a tira-colo, de modo a facilitar a rápida observação de aves que possam aparecer, de repente, nos céus.
Sendo este o principal local do país onde ocorrem o picanço-de-dorso-ruivo e a sombria, não conseguimos ver nenhum dos dois.
Observamos apenas alguns piscos-de-peito-ruivo, apesar deste sítio ser ainda rico em espécies como a águia-real, a águia-cobreira, o tartaranhão-cinzento, o tartaranhão-caçador, o falcão-peregrino, o falcão-abelheiro, o bufo-real e a gralha-de-bico-vermelha.
Quando entro na carrinha reparo que perdi um parafuso dos binóculos... Como se não bastasse o saco-cama, agora mais esta! Arrependo-me de não ter posto os binóculos para dentro do casaco, pelo menos nas partes mais difíceis do transepto...
Fazemos novamente o mesmo percurso da manhã, desta vez em sentido contrário. Vamos até Covide, mas nada. Perguntamos às pessoas, e nem sinais do saco-cama!
Damo-lo como perdido! É oficial!
Seguimos para Travassos, perto de Montalegre. Quando chegamos à aldeia, paramos a carrinha para olhar para os mapas.
Uma velhota, toda vestida de preto, lenço na cabeça e botas de borracha, andava por ali com uma gadanha, de volta de umas ervas.
Desconfiada e intrigada olha várias vezes para nós e para a carrinha. E eis senão quando se dirige a nós, de gadanha ao ombro!
Fica algum tempo a olhar para os símbolos e letras da carrinha, e depois olha para dentro da carrinha. Pensamos que vai perguntar qualquer coisa, mas ela olha novamente para a carrinha. Parece não perceber o que lê e olha para novamente para nós dentro da carrinha. A Julieta abre a janela e explica quem somos:
Sim, isso eu li aqui: Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves. Mas o que andam a fazer? A Julieta explica o projecto.
Ah! É que a gente gosta de saber o que andam a fazer na nossa terra. Uma pessoa não conhece… Se fossem homens não vinha perguntar que tinha medo, mas como eram... são meninas... são meninas ou são senhoras?... Não fosse o facto de estarmos dentro do carro, num cruzamento espaçoso e cheio de visibilidade, num dia solarengo e eu queria ver quem é que tinha medo de quem! Uma senhora que podia muito bem representar qualquer personificação da morte, tinha medo de se aproximar de homens desconhecidos. Simplesmente, pitoresco…
Este foi sem dúvida um dos momentos mais deliciosos desta viagem, mas haverá mais…
Às 15h30 iniciamos no apoio 55 de uma linha TAN não corrigida de 30 kV.
Eu e a Dora prospectamos 1 km e a Julieta outro.
Não encontramos aves mortas, nem vestígios.
Deixamos Montalegre e vamos dormir a Castro Laboreiro. Temos as botas de campo molhadas e está muito frio. Dirigimo-nos a uma Residencial. O senhor diz-nos que o esquentador está avariado e a ser reparado naquele exacto momento, mas não sabe quanto tempo demorará, pelo que não pode assegurar que tenhamos água quente!! Que sina a nossa!
Decidimos procurar outra residencial.
A pergunta, aparentemente ridícula, impunha-se: Tem água quente?
Sim, disse o senhor.
E aquecedor?
Estupefacto, responde: Aquecedor para quê? Bate sol o dia todo no quarto!
Na primeira semana, em Figueira de Castelo Rodrigo, já tínhamos notado, pelas águas frescas que nos teimavam em servir, que as pessoas nunca tinham frio, e por aqui, vai tudo pelo mesmo caminho! O inverno ainda não tinha chegado a estas paragens…
Pensámos a melhor forma de voltar a abordar o assunto com o senhor, e lá lhe perguntámos se era possível pôr-nos um aquecedor no quarto porque tínhamos as botas molhadas e precisávamos delas secas para o dia seguinte.
Anuiu.
Quando chegámos ao quarto, percebemos que já havia aquecimento central, mas ele só o ligou depois de falarmos!

18 Nov. 09:
Madrugamos como habitualmente. Mal saímos a porta sente-se o frio na cara. A primeira peripécia do dia é descongelar o vidro da frente da carrinha!
A Dora com uma escova esfrega o vidro ao mesmo tempo que deixa cair alguma água para descongelar a camada de gelo.
A Julieta liga o motor e o desembaciador.
Passado algum tempo lá conseguimos fazer-nos à estrada em segurança!
Prospectamos uma linha entre Lamas de Mouro e Castro Laboreiro.
Está tudo branco! Os campos estão cobertos por um manto de geada. O sol espreita tímido por entre umas nuvens baixas e as poças na beira dos caminhos tem gelo a flutuar.
Os lameiros estão cheios de água. As botas que ainda nem tinham recuperado da molha anterior já estão encharcadas de novo...
Encontramos penas congeladas (tal era o gelo!) que julgamos de milhafre-real, junto a um apoio, e penas que julgamos de águia-cobreira, junto a outro.
12h20: deixamos Castro Laboreiro e seguimos em direcção a Paradela.
Ao chegarmos a uma pequena aldeia chamada Gavieira, a Dora e a Julieta decidem perguntar a dois bêbados o caminho para Tibo e Adrão!!
O bafo deles até chegou à parte de trás da carrinha, onde eu ia sentada!
Antes de seguirmos concordamos em almoçar por ali. Entramos às 14h30 e já não havia nada para almoçar. Arranjaram-nos umas sandes de presunto e queijo. De comer e chorar por mais!
Quando terminamos e nos dirigimos à carrinha, reparo numa pequena loja com as seguintes palavras, escritas à mão, a azul, na parede:
PADEIRO DE ROUÇAS
PADARIA – MERCEARIA
E
VINHOS
REPARAÇÃO AO ESTÔMAGO
E
LAVAGEM AOS INTESTINOS

e uma seta a apontar para a porta da loja, não vá o transeunte não perceber!
Nem comento!
Fotografo apenas! É digno de ficar para a posteridade!
Entramos na carrinha e seguimos. Tibo e Adrão ficam de lado. Decidimos procurar uma linha entre Várzea e Paradela.
Andamos, andamos, voltas e mais voltas, já estamos junto à Barragem do Lindoso quando decidimos perguntar novamente informações sobre como encontrar o nosso destino.
Afinal, já tínhamos passado por Paradela e nem tínhamos reparado!
Finalmente encontramos um apoio onde iniciar a prospecção!
São 16 horas. Já não temos muito tempo até que escureça.
Ali logo, no apoio 13, deparamo-nos com penas e ossos. Marcamos o ponto 203 no GPS.
Terminamos já noite e pomo-nos a caminho de Bragança.
Assim como ontem, hoje também não choveu enquanto andámos no campo.
Quando chegamos, as indicações continuam a ser do melhor e mais uma vez demoramos algum tempo a encontrar a Pousada da Juventude.
Jantamos no BragançaShopping!
Volta a tornar-se estranha a passagem do campo para a civilização! Novamente, personagens da era medieval tele-transportadas para o futuro. Mas pelo menos está quentinho!

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