Em busca do Vale Encaixado

Narrado por Carla Veríssimo, com os contributos de Julieta Costa, João Neves e Dora Querido. Fotos de João Neves e Carla Veríssimo

02 Nov. 2009:
8h40 da manhã já a carrinha da SPEA está em 4 piscas na Rotunda do D. Dinis, em Leiria.
Levava imensas coisas comigo, sempre com medo de que seja preciso mais aquelas calças, toalhas, mais o saco-cama, enfim.
A Julieta e a Dora são obrigadas a tentar, mais uma vez, abrir a porta de trás da carrinha.
Em Lisboa não tinham conseguido. Depois de algumas voltas a Dora lá consegue.
Enfiamos tudo lá atrás e seguimos viagem até Albergaria-a-Velha, onde o João se junta a nós.
São 11 da manhã. Seguimos até Vila Nova de Foz Côa, onde chegamos por volta das 13h30.
Almoçámos no Dallas!!!!!!! No fim das favas, do bacalhau à Brás e do borrego, seguimos para Figueira de Castelo Rodrigo.
Quando chegámos, fomos até à zona da Barragem de Santa Maria de Aguiar, aproveitar as últimas horas de luz, para o João nos ensinar como prospectar uma linha eléctrica.
Estamos a colaborar num Projecto que pretende determinar o impacte das linhas eléctricas de média e alta tensão na avifauna em Portugal.
Os troços a prospectar foram seleccionados dentro de Áreas Protegidas, Zonas de Protecção Especial para Aves (ZPE's) e IBA's (Important Bird Areas).
Cada troço deverá ser visitado pelo menos uma vez em 4 períodos do ciclo anual de vida das aves: Invernada (Dezembro – Janeiro); Reprodução (Março – Abril); Dispersão Pós-Reprodutora (Maio – Julho) e Migração (Setembro – Outubro).
Cada elemento da equipa segue a uma distância de 5 m da projecção da linha no solo, de forma a prospectar 10 m de linha de cada lado.
De olhos postos no chão, procuramos atentamente qualquer vestígio de aves, que possam ter colidido com a linha, ou morrido electrocutadas.
As prospecções ao longo do vão (distância entre dois apoios) são importantes para detectar as colisões e as prospecções junto aos apoios para detectar electrocussões.
Não é muito fácil habituar os olhos a descobrir penas, ossos ou mesmo aves inteiras num solo onde tudo está mimetizado, onde ossos se confundem com pedras, onde penas se confundem com paus, onde no meio de todos aqueles castanhos, verdes, amarelos, dourados, pode estar um bicho inteiro, ali mesmo ao nosso lado, que não o vemos, se não olharmos cuidadosamente.
De repente o João chama-nos. Estava junto a um apoio, um nome mais técnico dado aos conhecidos postes das linhas eléctricas.
Havia um osso. Um osso apenas. Um úmero.
O João explicou-nos que devíamos fazer círculos em volta de cada apoio, para prospectar cuidadosamente em busca de outros indícios que nos pudessem dar mais pistas sobre o sucedido.
Prospectar à volta dos apoio é importante para detectar possíveis electrocussões, e prospectar ao longo do vão, importante para as colisões.
De cada vez que encontramos vestígios, devemos também fazer círculos em redor, em busca de mais, já que o cadáver pode estar espalhado, devido ao vento, à passagem de animais, ao cultivo da terra ou mesmo à predação.
Demos voltas e voltas e nada, até que novamente o João, se debruça no chão junto a um amontoado de pequenos ossos, falanges, uma garra, e mais uns quantos.
Foi aí que percebemos o quanto o nosso olhar devia ser atento. Entre vestígios, palpites, hipóteses e luvas de laboratório nas mãos, aquilo parecia um autêntico CSI.
Colocámos os ossos dentro de um saco, devidamente identificado com a data, o local e o nome da espécie que julgamos ter encontrado.
Julgamos que o úmero é de cegonha, mas sem certeza. Teremos de confirmar mais tarde.
Preenchemos, paralelamente, uma ficha de campo com outros dados como:
1)coordenadas GPS;
2)a voltagem da linha (a tensão de uma linha pode ser deduzida pelo número de discos isoladores das amarrações. Cada disco isola aproximadamente 15 kV, aplicando-se mais um disco de segurança, ou seja, numa linha de 30 kV existem 3 discos isoladores. As excepções dão-se quando a linha passa junto a uma estrada ou junto a residências, em que existem 2 ou mais discos de segurança);
3)a composição do apoio (madeira, metal, betão);
4)o tipo de armação da linha (TAL - Triângulo para Alinhamento; TAN - Triângulo para Ângulo; GAL – Galhardete para Alinhamento; GAN - Galhardete para Ângulo; CAL – Canadiana para Alinhamento; CAN – Canadiana para Ângulo);
5)o tipo de isoladores (isoladores rígidos na vertical, na horizontal, em suspensão);
6)a espécie de ave (todos os cadáveres ou seus restos devem ser identificados individualmente segundo taxonomia);
7)a causa da morte (sempre que for possível, devemos olhar para indícios no cadáver que nos permitam concluir se a ave morreu por colisão ou por electrocussão);
8)a data da morte (“1-2 dias” - a ave não apresenta sinais de decomposição; “1 semana” – são visíveis larvas de insecto em desenvolvimento; “1 mês” – porção considerável de tecido ósseo exposto; “Mais de 1 mês” – praticamente só tecido ósseo e sem actividade de larvas de insecto);
9)o habitat do troço e o habitat junto do cadáver;
10)a distância do cadáver ao apoio e à linha;
11)o número do apoio (marcados na base, pintados na lateral do apoio, inscritos numa placa metálica, ou não existentes de todo! E neste caso, salva-nos saber que a numeração de uma linha começa num seccionador e acaba num posto de transformação, sendo que vai aumentando do primeiro para o segundo).
Por volta das 17h começa a escurecer e torna-se difícil prospectar. Decidimos ir instalar-nos no Hotel em Figueira de Castelo Rodrigo.
Jantamos num restaurante tipicamente regional, onde fomos recebidos com simpatia e graciosidade.
Quando voltamos ao Hotel ainda ligamos os computadores e planeamos o dia seguinte.

03 Nov. 09:
A Julieta é a primeira a sair da cama.
O despertador do telemóvel dela deve ter tocado, e eu apesar de dormir numa cama mesmo encostada à dela, não o ouço...
São 6 da manhã.
No meu sono, começo a ouvir muito ao longe, muito ao leve, água a correr na banheira. Ganho consciência que ela está no banho, mas continuo a dormir os meus últimos minutos.
E já tinha adormecido completamente, quando um som toca ao fundo. É um som calmo, que dá prazer, nada a ver com a maioria dos despertadores de telemóvel.
Vem da cama da Dora, encostada à outra parede do quarto. Partilhamos um triplo.
São 6h30 da manhã.
A Julieta sai da casa de banho e a Dora começa lentamente a vestir-se.
Eu continuo no confortável calor dos lençóis até às 6h45, depois salto num ápice e visto-me.
Entretanto apercebo-me da Julieta com um problema no olho. Tinha colocado a lente de contacto da Dora, no seu olho esquerdo. Mas o problema nem era ter colocado uma lente que não era sua, mas sim, ter confundido também os frascos do líquido das lentes, e ao invés de pôr o seu, ter posto o líquido, ácido, que a Dora usa para as lentes dela!

O olho estava completamente inchado, vermelho, a lacrimejar, conseguia sentir o ardor, o tremer, a sensação horrível que provocava uma simples gota de ácido na córnea.
Uma vez saltou-me lixívia para o olho... O que a Julieta estava a sentir naquele momento, seria muito semelhante...
Nem conseguia abrir o olho, mas na sua garra, lá fomos tomar o pequeno almoço todos juntos, seguindo para a Vermiosa, logo de seguida.
Nesta pequena aldeia, nas proximidades de Figueira, iríamos prospectar 4 km de linha corrigida, ou seja, que já tinha sido prospectada previamente e que se tinha considerado perigosa para as aves, pelo que no seguimento de um protocolo entre a SPEA, a QUERCUS, o ICN e a EDP, foi protegida com umas mangas em PVC, junto aos apoios, para diminuir a probabilidade das aves morrerem electrocutadas, e foram colocados uns sinalizadores ao longo da linha, chamados salva-pássaros ou espirais de sinalização para tornar a linha mais visível e evitar mortes por colisão.
Trabalhamos em par, para maximizar o trabalho. Cada equipa tem de levar um walkie-talkie, para comunicar com a outra, sempre que necessário. Também não se pode esquecer do GPS, importante, por exemplo, para saber quantos quilómetros prospectamos, ou para marcar pontos, quando encontramos vestígios ou a ave morta, por inteiro.
Enquanto duas pessoas começam a prospectar uma linha eléctrica, em busca de vestígios (penas e/ou ossos) de aves mortas, os outros dois seguem com a carrinha até um ponto em que a linha cruze com alguma estrada ou caminho, para lá deixarem a carrinha, e prospectarem daí em diante.
Os primeiros, quando chegam à carrinha, seguem nela e vão buscar os segundos, que estarão a terminar a sua monitorização.
Faço equipa com o João, encontramos penas de pega-azul e de gralha.
Mais à frente, ao passar na zona de uma vinha, deparo-me com um amontoado de ossos. Chamo logo o João, que já ia mais à frente.
Começamos a juntar todos os ossos e a procurar mais vestígios à volta. Não encontramos mais nada. O João acha que são ossos de pombo.
Pomos tudo num saco, etiquetamos, preenchemos a ficha, tiramos o ponto GPS e seguimos.
Até terminar esse troço, não encontramos mais nada.
Fazemos então uma pausa para almoço. À tarde retomamos, eu e o João, novamente, e a Dora e a Julieta.
Pouco depois de eu e o João nos metermos ao caminho, ele chama-me logo para ver o que tinha encontrado. Penas e ossos de uma águia-cobreira, nas proximidades de um apoio.
A ráquis da pena é inteiramente branca, e a própria pena é branca por baixo e castanho-escura por cima. No fim do procedimento habitual: saco, etiqueta, ficha, ponto GPS, seguimos.
Encontramos mais uns ossos, numa zona queimada da orla da floresta, que não conseguimos identificar e por isso procedemos do mesmo modo, levando tudo connosco, para mais tarde ir à Osteoteca do IGESPAR, IP (Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico, Instituto Público), para consultar a sua colecção de ossos.
De repente toca o walkie-talkie. A Dora pergunta onde estamos. O João diz-lhe que estamos parados porque encontrámos mais uns bichos.
A Dora espicaça do outro lado:
Mas vocês encontram tudo?!
E claro que o João não deixa a coisa por menos e sai-se logo com um:
Pudera, nós temos 4 olhos, e vocês só têm 3!! (Dois da Dora mais um da Julieta!)
Passados alguns apoios, vejo uma pena no chão. Baixo-me ao mesmo tempo que digo para o João: Está aqui uma pena. Lanço o olhar à periferia e digo: Aqui está outra. Olha, e aqui outra, e aqui! De repente, ergo-me e vejo muitas penas, todas espalhadas por todo o lado!
Eram de um tordo. Sem os seus ossos fica difícil identificar a causa da sua morte, contudo, conseguimos perceber que tinha sido predado por um mamífero, pela ráquis das penas toda roída.
No caso da predação por aves, a ráquis mantêm-se inteira e poderá por vezes apresentar um vinco na base.
Até ao fim desse troço de linha encontramos ainda mais umas penas de pombo-torcaz e de estorninho.
Está a começar a escurecer.
Voltamos a Figueira. A Julieta, que a meio da manhã já tinha ido à Farmácia, consegue ao início da noite, uma consulta no médico da Óptica. Dá-lhe medicamentos e uns pensos para tapar o olho. Parece mesmo um Pirata!
Durante o dia, houve ainda tempo para falar com o António Monteiro, Biólogo do Parque Natural do Douro Internacional, que observou o úmero encontrado no dia anterior e disse ser de um grifo.

04 Nov. 09:
Depois do ritual da Dora e da Julieta, saio ao último minuto do quentinho da cama.
Toca a vestir!
Binóculos e máquina fotográfica a tira-colo; bolsa à cintura para lápis, borracha, afia, caderno de notas, post-it, marcadores, garrafa de água, telemóvel, sacos de plástico grandes e pequenos, luvas de laboratório, e luvas sem dedos, enfiadas nas mãos, que o frio lá fora, é mais que muito!
Descemos as escadas de madeira do Hotel e acho que devemos acordar toda a gente com o barulho das botas de campo, degraus abaixo.
Juntamo-nos ao João para o pequeno-almoço, onde delineamos o dia, de um modo geral.
8h30 da manhã, a máquina dispara em direcção a uma águia-de-asa-redonda, pousada num rochedo.
Eu e a Dora começamos a prospectar uma linha entre Mata de Lobos e Escalhão.
Passados poucos apoios, deparamo-nos logo com alguns ossos, que após um olhar mais atento vão sendo cada vez mais. Fotografamos de imediato o achado para ter uma visão de como encontrámos os vestígios no terreno, e de seguida juntamos todos os ossos e penas para mais umas fotografias antes de etiquetar e colocar dentro de um saco.
Mais umas penas de gralha, outra de peneireiro mais à frente e outros dois amontoados de ossos e penas de águia-de-asa-redonda, separados por um metro de distância, estas também com indícios de predação por mamífero.
Entretanto somos sobrevoadas por uns 6 grifos. Ficaríamos ali o dia todo a vê-los aproveitar as correntes térmicas, com as suas imponentes envergaduras, mas temos de continuar.
No final, juntamo-nos ao João e à Julieta para almoçar, num restaurante em Escalhão.
No fim do almoço entramos na carrinha e tínhamos já o motor a trabalhar, quando o senhor do restaurante, do lado de fora da janela:
Desculpem, os senhores pediram-me a factura, pelo menos paguem-me o almoço!...
E nós muito embaraçados:
Ah, pois foi..... Desculpe, foi sem querer....
Por distracção, entre o tirar e guardar cartões, talões e número de contribuinte, guardámos a factura e nada de dar o dinheiro ao senhor!! Que vergonha.... Lá foi a Julieta pagar o almoço ao senhor.
À tarde, faço equipa com o João, num troço de 1 km de linha. Só encontramos ossos de mamífero e penas de um chasco.
É muito normal encontrarmos ossos de mamíferos. Nesses casos, afastamo-los da zona a prospectar, para não haver confusões numa próxima monitorização.
Entretanto chegam a Dora e a Julieta da prospecção delas e passamos para outra linha. Aí, faço equipa com a Julieta, numa linha não corrigida, de 30 kV.
A paisagem é fantástica, quando estamos nos pontos mais altos, avista-se ao longe, lá ao fundo, um rio, é o Águeda.
As escarpas encaixadas são de uma imponência magnífica.
Por isso as aves rupícolas gostam de viver ali. Sobrevoar aqueles vales, pousar nos apoios mais altos das serras.
Ao subir uma encosta encontramos uma toutinegra-de-barrete. É um macho, pois denota-se perfeitamente o barrete preto. Apresenta sinais de decomposição na barriga. Deve ter morrido há uma semana, tem larvas de insecto em desenvolvimento.
Está a meio do vão, mesmo por baixo da linha eléctrica. Percebemos claramente que morreu por colisão.
Mais à frente, outra ave inteira, mas nada que se pareça com os 14 cm da toutinegra.
É um grifo. Inteiro. Enorme. 95 a 105 cm de comprimento, 230 a 265 cm de envergadura de asas.
Está caído a uns 5 metros do apoio, de barriga para cima, asas ligeiramente abertas e cabeça para o lado.
Tem sinais de decomposição nas asas, na cabeça e nas patas.
Deve ter morrido há 2, 3 semanas, talvez electrocutado no apoio.
Temos de o deixar ali e voltar no dia seguinte para recolhê-lo, pois não temos sacos grandes o suficiente para o colocarmos inteiro.

05 Nov. 09:
De manhã bem cedo eu e a Julieta deixamos o João e a Dora a prospectar uma linha em Freixeda do Torrão, e vamos buscar o grifo encontrado no dia anterior.
Já tínhamos falado com o António Monteiro, que nos autorizou a deixá-lo na arca congeladora da sede do Parque Natural.
A Julieta aproveita para parar na zona de uma vinha, onde julga poder estar o seu GPS, que entretanto tinha desaparecido. Gatinhamos debaixo das vides, tubos e arames e nada. Vamos ao encontro do João e da Dora, que já tinham acabado a prospecção, e dividimo-nos novamente em duas equipas.
Eu e o João encontramos apenas umas penas de pega-azul.
Mas depois, bem vivos, ao longo do percurso vemos alvéolas, poupas, um picanço-real e cotovias. Vemos também imensos cogumelos, de várias cores e tamanhos.
E ouvimos tiros. É quinta-feira, dia de caça.
Depois do almoço, novamente no Restaurante do costume, para não variar!, faço par com a Julieta. Encontramos vários ossos e várias penas de águia-cobreira, escondidas numa fresta de uma rocha.
Ao fim da tarde, deixamos Figueira de Castelo Rodrigo e partimos em direcção a Mogadouro. Instalamo-nos numa Residencial.
A Dora começa a desenvolver uma teoria acerca da decoração do sítio...
É um edifício de vários andares, com aspecto de casa particular. Os degraus das escadas são irregulares. Não existe elevador. O quarto é frio. Mal chegamos pedimos logo à senhora para ligar o ar condicionado, que nunca chegámos a entender como funcionava.
Os azulejos, os toalheiros, as cortinas da banheira com as iniciais da Residencial bordadas, enfim, tudo fora requintadamente decorado, como se tivesse sido escolhido a dedo, com muito gosto... Infelizmente o resultado final era simplesmente piroso!
Mas depois com esse “bom gosto” não se coadunavam as portas perras, velhas, sem óleo, a canalização velha, que a água primeiro que escorresse banheira abaixo, era preciso esperar uns bons 10 minutos,... e as toalhas que pareciam hóstias, pois quase se desfaziam assim que nos limpávamos nelas.
Ainda assim, jantámos na Residencial.
Um lume falso numa espécie de salamandra, uma mesa de bilhar com padrão de mármore e um balcão que parece de bar de discoteca. Depois uma porta para a sala de jantar, um salão enorme, aliás, com mesas corridas, só para nós. O talher, um de cada nação, mas alguns garfos com uma filigrana em ouro!
Um ambiente familiar. Vieram à mesa servir-nos pelo menos 3 pessoas. Mais as duas criancinhas que andavam por ali a vaguear à roda da mesa. Éramos sem dúvida a atracção da noite!
Enquanto jantávamos, o João tentava ver o jogo de futebol do Benfica, mas a televisão tinha um péssimo sinal, as cores das camisolas estavam todas alteradas e só os comentários dos jornalistas deixavam perceber quem tinha a bola!!

06 Nov. 09:
Em Remondes, faço inicialmente par com a Dora.
Caminhamos entre folhas, bugalhos, matos, silvas, árvores e arbustos. Pulamos cercas, muros, arame farpado, subimos e descemos alguns rochedos, saltamos portões.
Encontramos penas de rapina e vemos um milhafre-real a voar ao fundo.
Assim que terminamos, faço equipa com o João noutro troço de linha, onde não encontramos quaisquer vestígios.
Almoçamos num café em Castro Vicente.
De tarde, eu e a Julieta prospectamos a última linha. Também não encontramos vestígios, mas vemos muitos cogumelos, bem vermelhos, são do género Amanita; vemos chapins, tentilhões e há muitos zimbros, tojos, giestas e roseiras-bravas.
O troço que temos de percorrer é difícil, o terreno muito acentuado, grandes subidas e descidas. Fico sem água. Ao passar junto aos terrenos de um agricultor que ali andava, junto às suas malhadas, decido pedir-lhe água. Ele levanta a mangueira do chão e enche-me a garrafa. A água sabia a terra e a malhadas de porcos...
No final do percurso, já estafada, de tanto descer e subir, a Julieta vira-se para mim e diz-me: Porque não tiras as calças impermeáveis?
E eu pensei... Sou mesmo loira... Sim, claro... já o devia ter feito há muito tempo...
Com todo aquele esforço, as minhas pernas pingavam... Nunca tinha suado das pernas. Aliás, quando faço exercício físico não costumo suar. Naquele fim de tarde, aquele esforço e aquelas calças impermeáveis a fazer sauna fizeram perder-me gotas de suor, como nunca antes.
Finalmente chegámos à carrinha. Pegámos nela e fomos buscar o João e a Dora, que estavam a terminar a última linha daquela semana.
No fim de identificarmos as penas e os ossos que faltavam e de fotografar o material que não íamos levar connosco, saímos finalmente de Castro Vicente, por volta das 18h. Seguimos pelo IP4 até ao Porto. Era eu que conduzia. É de facto, e como toda a gente sabe, uma estrada horrível. Estreita, com muitas curvas, muita inclinação. Não eram os avisos “Trave com o motor”, que me levavam a reduzir para quarta. Era eu própria que sentia um maior controlo sobre a carrinha, dessa forma.
Como se isso não bastasse, estava a chover.
Depois, ao longo da estrada, iam aparecendo saídas para várias localidades, umas localizadas em curvas, outras logo após uma ponte ou viaduto, tão escondidas, que só se viam mesmo em cima. Eu só pensava que se tivesse que sair para alguma delas, iria sentir-me atrapalhada.
Entretanto, na zona do Marão, um nevoeiro tão cerrado, tão cerrado, que o “trave com o motor” era quase “não ande”, porque tinha de ir em segunda. Sim, em segunda, para poder ver ou adivinhar um palmo que fosse à frente da carrinha!
Ainda por cima não havia carros à minha frente, para me poder refugiar nas suas luzes traseiras. Restava-me a minha boa visão, alguma imaginação, muita atenção, os reflectores da divisória central, alguns sinais de trânsito, que ainda assim, só via quando estava mesmo em cima deles, às vezes as luzes dos carros em sentido contrário, e a posição corcunda em que ia a conduzir, de forma a ver aquilo tudo!!!!!!
Devo ter conduzido naquelas condições durante uma boa hora. E a acrescentar ainda ia de bexiga completamente cheia...
Entretanto vejo uma placa a indicar um posto de abastecimento de combustíveis a 2 km.
Penso: Vou parar para ir à casa-de-banho.
Passado um pouco, uma placa indicava esse mesmo posto de abastecimento, a 1,5 km, na saída de outras localidades. Pensei: Não quero sair do IP4, vou esperar até que me apareça um posto aqui junto à estrada.
Vem nova placa, com nova indicação de 2 km, e depois indicação a 1,5 km, numa nova saída, desta vez para Vila Real.
Em conjunto com o João, decido sair. Percebo que o IP4 não é como uma auto-estrada, em que temos as estações de serviço, ali ao lado.
Saio então para Vila Real e vou à casa-de-banho de uma bomba de combustíveis.
Retomo a viagem, e por fim lá chegamos ao Porto.
Acabamos por jantar no Dolce Vitta.
Depois de um dia nos confins de Remondes e Castro Vicente, jantar num Centro Comercial, é quase como passar de uma casa para um palácio, mas na casa, enchemos muito mais o estômago, a alma e a vista!
As nossas indumentarias destoam completamente do ambiente que nos circunda assim como do local! Parece uma cena tirada de um filme em que os camponeses do passado são tele-transportados para o futuro…
A Julieta, a Dora e o João continuaram viagem para sul. O tempo ficou melhor, mas mesmo assim a estrada não encolhe e a viagem prolongou-se pela noite dentro.