Uma molha nunca vem só...

Narrado por Carla Veríssimo, com os contributos de Julieta Costa, Rita Moreira e Nuno Luz. Fotos de Carla Veríssimo.

27 Dez. 09:
Época de Natal. Festejo-o em família no Alentejo.
Parto por volta do meia-dia e faço três horas e meia de viagem até Leiria.
Das quatro às sete e meia tenho tempo de arrumar todas as bagagens: as que ficam e as que vão para mais uma semana de trabalho de campo.
A Julieta chega entretanto e temos como destino, Miranda do Douro!
Vamos sozinhas até ao Porto, onde o Tiago Carvalho se junta a nós como voluntário.
A Rita vinha com outro voluntário - o Nuno Luz. Saíram de Lisboa por volta do meio-dia, de malas, mochilas e mapas na mão!
Uma pesquisa na internet tinha indicado que o caminho mais curto e mais rápido era atravessar a fronteira e entrar em Miranda por Espanha, e até lá, de facto, não houve qualquer dificuldade, o problema foi depois, já noite, em Espanha, com chuva por vezes intensa, e eles perdidos!! E tais eram os becos sem saída, que quando deram conta estavam dentro de uma garagem particular!!, com uma mota estacionada e roupa estendida!
Depois da ajuda da dona da casa e mais umas quantas voltas em estradas de terra batida, lá encontraram o caminho certo.
Já passava das 22 h, quando chegaram, finalmente!! Procuraram um local para jantar. Contudo, os restaurantes já estavam fechados ou a fechar e diziam que não serviam àquelas horas...
Debaixo dum grande aguaceiro, correram para o jipe e seguiram viagem para a residencial, na esperança que lhes servissem tostas ou sandes.
A residencial tinha bastante gente e provavelmente seria um dos poucos locais ainda abertos àquela hora. Pediram tostas e um chá quente para aquecer.
Eram 23h30 quando finalmente foram dormir.
Eu, a Julieta e o Tiago, jantámos no Porto e partimos pelas 22h30.
Na zona do Marão deparámo-nos com nevoeiro e blocos de gelo na berma da estrada.
Depois seguimos até Bragança e descemos para Miranda. Uma volta enorme....
A Residencial era na Estrada Nacional que liga Miranda a Mogadouro... Ainda tínhamos de andar mais um pouco. E de facto, andámos, andámos, e da Residencial nada... começámos a achar que não podia ser tão longe... Àquela hora não havia pessoas nas ruas para pedir informações. Continuámos a andar. Por fim, lá chegámos a um sítio cheio de carros estacionados e algumas pessoas. Parámos.
Estávamos em frente à Associação Cultural dos Pauliteiros de Miranda. O Tiago saiu da carrinha para perguntar onde era a Residencial. Disseram que eram em Sendim, a uns 9 km dali...
Lá fomos. Quando cheguei só pensava num banho quente para relaxar o corpo, descansar e dormir.
Deitámo-nos às 3h30 da manhã...
Portanto para quem iniciou uma viagem ao meio-dia, poder deitar-se às 3h30 da manhã, quase non-stop, é bom, não é?!...

28 Dez. 09:
De manhã, nem consigo saltar da cama, tal era o jet lag...
A Julieta sai do quarto às 8 e peço-lhe que me chame no fim do pequeno-almoço. Prefiro não comer e dormir um pouco mais.
Só às 10 horas me consigo recompor.
Às 11 eu e o Tiago já estamos a prospectar uma linha em galhardete e a Rita e o Nuno uma em triângulo, em Fonte d´Aldeia, perto de Sendim.
A Julieta deixa-nos e vai começar a prospecção pelo outro lado da linha.
Desta vez, com a carrinha das Linhas e o jipe do Nuno, a prospecção deve ser mais rápida!
Chove. De precaução quando calço as botas, meto logo uns sacos de plástico, para adiar os pés molhados, mas os lameiros estão encharcados e em certas partes as botas começam a ficar enterradas na terra ocre e ouve-se um shlof shlof...
O Tiago diz que não usa as botas dele desde o 12º ano, e que são novas...
Pergunto-lhe se já estão a deixar entrar água. Diz-me que não, e então digo-lhe Ainda bem, mas se lhe tens muito amor, aviso já que vão ficar muito sujas...
Chegamos a uma zona de bosquete onde perdemos algum tempo a observar vários passeriformes. Tento fotografar, mas as alvéolas e os tentilhões não param...
Mais uns passos e a máquina dispara para umas estevas e zimbros, característicos da paisagem, juntamente com as giestas, os bosques de sobreiros e azinheiras, as vinhas e os planaltos com aproveitamento agro-silvo-pecuário.
O primeiro cadáver é encontrado no meio do cascalho e da terra ensopada. Chamo o Tiago para ver e explico-lhe o procedimento.
Tem as asas, a quilha, penas e pouco mais. É um passeriforme, mas as penas estão tão molhadas que não consigo identificar.
O Tiago encontrou ainda um osso de mamífero, que atiro para fora da zona da prospecção de modo a não haver confusões futuras.
Entretanto, no céu um milhafre-real, com a sua cauda tipicamente em forma de rabo de bacalhau, que vira e revira continuamente.
A Rita e o Nuno ainda não tinham andado muito quando encontraram uma petinha morta no chão. Parecia uma petinha-dos-prados (Anthus pratensis) mas estava de tal modo ensopada que era difícil confirmar. Tinha morrido recentemente por colisão e ainda estava intacta. Recolheram, anotaram tudo o que era necessário e seguiram. Algumas zonas estavam de tal modo alagadas que era impossível prospectá-las. Um pouco mais à frente, junto a um apoio, encontraram um dos isoladores partidos no chão e algumas penas presas no silvado junto à base do mesmo. Começaram a achar que aquela era uma linha perigosa. Ainda só tinham andado 400 m e já 2 aves mortas!
Apanharam as penas ensopadas e alguns ossos em redor. Penas daquele tamanho indicavam ser de rapina, mas estavam tão encharcadas e sujas que não era possível perceber qual seria. A Rita espreitou por entre o silvado e no fundo viu uma pata! Felizmente o Nuno tinha trazido uma tesoura de poda e a muito custo lá conseguiu apanhá-la. A pata era enorme e tinha penas até baixo, o que reduzia logo o número de espécies possíveis. Tinhas umas garras também enormes e fechadas sobre si mesmas. O interior da pata estava escuro. A ave deve ter morrido electrocutada no apoio. Enquanto a Rita fotografa e apanha mais ossos e penas, o Nuno continuava à procura do crânio. Tinha de estar por ali e não ia desistir enquanto não o encontrasse. Deu a volta ao silvado e começou a cortar. E eis quando a Rita ouve: “Encontrei!”. O crânio era enorme e estava já totalmente limpo.
Mais à frente encontraram uns postes que não correspondiam à numeração que estavam a seguir. Havia um cruzamento de linhas e provavelmente a numeração era da outra linha. Os registos na ficha de campo eram cada vez mais complicados devido à chuva que caía.
Entraram num campo lavrado. A terra solta, com toda a água da chuva, estava transformada em lama. Era muito difícil avançar naquele terreno, pois estavam constantemente a enterrar-se.
Toda a linha estava sobre lameiros, pelo que era necessário saltar muros constantemente. Avançaram até uma ribeira, agora transformada num rio com corrente. Tentaram encontrar um local para passar, mas era muito larga. Viram-se obrigados a voltar para trás na esperança de encontrar passagem. A única solução era trepar um pouco as raízes de uma árvore, agora descobertas pelas forças da água e tentar saltar para o outro lado. Um pouco de coragem, balanço e um salto, mas sempre com receio de caírem dentro de água! Aterraram do outro lado! Já estava!
Já noutro lameiro, deparam-se com vacas a meio do terreno. Elas olham com alguma curiosidade, e eles olham para a distância a que estão da árvore ou muro mais próximos!!
Mas claro elas continuaram a pastar.
Ao almoço, antes de entrar no restaurante tiro as botas enlameadas e encharcadas e troco de meias.
Os sacos de plástico ajudaram um pouco, mas não são a solução para o problema.
Eu e a Rita comentamos que deviam inventar umas botas de campo como as de borracha: totalmente de plástico e impermeáveis, mas com todo o conforto, maleabilidade e aderência das de campo.
Talvez façamos uma patente!
Comemos uma alheira, típica de Miranda do Douro, e não de Mirandela!! Nada de confusões!
À tarde faço par com o Nuno. A Julieta deixa-nos perto de uma aldeia chamada Duas Igrejas, ou como se escreve em Mirandês: Dues Eigreijas.
Estamos em terras dos Galadum Galandaina.
Começamos a linha por um lado e o Tiago e a Rita por outro.
Ainda não parou de chover. Já só temos uma hora de luz, por isso a Julieta posiciona-se num apoio a meio da linha e progride na direcção deles, para conseguirmos pelo menos fazer metade da linha.
A Rita e o Tiago deparam-se novamente com campos lavrados, nos quais se enterram, por vezes, até aos joelhos. Os pés estão irreconhecíveis, parecem uns bolos de lama pesados e enormes.
A chuva intensa perturba a visão ao longe e têm muita dificuldade em perceber se vão encontrar um caminho enlameado ou um ribeiro. A inclinação dos terrenos e a água que corre neles leva a crer que será um ribeiro, mas como nos caminhos também corre muita água, torna-se quase indiferente ir por um lado ou outro. Só quando tentam passar percebem que a corrente é tão forte, a vegetação ripícola tanta e a largura tão grande, que é impossível atravessar. Não encontram como chegar à outra margem e desistem.
Vão andando pelo caminho (mais ribeiro que outra coisa!), na esperança de chegar a alguma estrada onde os possam apanhar.
Entretanto encontram uma ponte improvisada!, e apesar de encharcados, decidem continuar a prospectar a linha, para ter algum rendimento.
A quantidade de água dificulta observar o chão e mesmo que lá existam vestígios, o mais provável é terem sido arrastados pela água… Finalmente encontram a Julieta!
Eu e o Nuno, do nosso lado, atravessamos uma ponte, debaixo da qual passa um rio cor de lama, já que as terras estão todas encharcadas e a água vai colorando.
Só conseguimos fazer 5 apoios. Os terrenos estão por demais aguados e enterramos as botas a cada passo. Desistimos... Voltamos para trás, a corta-mato, em direcção à aldeia.
No fim de passarmos os lameiros, os nabos inundados de alguma Dona Teresa e de filmarmos as águas de um rio, que corriam com uma força brutal, chegamos a um caminho, onde perguntamos a um senhor se há algum café por ali.
Sempre com chuva a cair, ele responde-nos que há um a 200 metros.
Andamos, andamos, os carros passam e além da chuva que nos cai em cima levamos com a água do chão, que se levanta à velocidade e proximidade que passam da berma...
E do café, nada. Definitivamente o senhor não sabe o que são 200 metros!
Devemos ter passado a aldeia toda e café, nem sinal. Das duas igrejas de Duas Igrejas, também só vemos uma...
O Nuno só dizia: De facto só perguntámos se havia algum café. Não perguntámos se estava aberto!
Por fim chegamos onde? À Associação Cultural dos Pauliteiros de Miranda!!
Exactamente! Onde estivemos na madrugada anterior!
Estava aberta!
Entrámos. O jovem atrás do balcão disse-nos para fecharmos a porta, que tinha o ar condicionado ligado, mas como esperávamos pelo resto da equipa, não sabíamos se teríamos tempo de pedir alguma coisa. Primeiro pedimos um chá. Depois vimos luzes de um carro lá fora, que julgámos serem eles e cancelámos o pedido. Saímos.
Afinal não eram e voltámos a entrar. O rapaz voltou a dizer-nos para fecharmos a porta!
Voltámos a pedir um chá. Quando ele se vira para aquecer a água, a luz vai abaixo!
O Nuno diz em tom de gozo: Pode ser um chá gelado, não faz mal!!
Mas rapidamente a luz volta. Pergunta-nos que chá queremos. O Nuno pede preto. Eu não quero.
O rapaz vira-se para os chás e não sabe qual é o preto. Há um manancial de chás na prateleira! A teoria do Nuno é a de que como a população local é idosa, o que mais servem são chás!
Continuamos na brincadeira. Mais vale gozar com a situação. Estamos ensopados. O Nuno diz que amanhã temos de fazer linhas de escafandro!
Rio!
Rio de rir e rio de água!!!
Entretanto chegam os outros. O Tiago estava todo encharcado e não tinha trazido mais mudas de calças nem calçado.
Perguntam ao senhor do café onde podiam ir comprar galochas e calças impermeáveis. Indica-lhes uma loja que vende de tudo.
Quando chegamos à Residencial, tiramos finalmente a roupa molhada.
Aliás, acho que só temos os dentes secos!! E como estão dentro da boca, ainda assim são húmidos, da saliva!!
A bolsa da máquina fotográfica está ensopada. Penduro os casacos impermeáveis no candeeiro por cima das camas, umas camisolas e umas calças numa cadeira e para o resto da roupa faço um estendal com as fitas dos cortinados da janela. O estandarte é digno de fotografias!
Até a máquina está cheia de gotas de água, ligo-a e desligo-a intermitentemente de forma a limpá-la o melhor possível.
Tiro do bolso do casaco a ficha de campo, toda molhada e amarfanhada.
A Julieta abre-a com muito cuidado e deixa a secar o que chama de palimpsesto! E de facto, aquela “coisa”, é um autêntico manuscrito sobre o qual não vamos escrever de novo, nem raspar, porque se não desaparece, mas no qual desejamos arduamente fazer reaparecer os primitivos caracteres!!
No fim do banho (mais água, portanto!, mas agora quente e reconfortante!), jantamos no restaurante da Residencial.
Quando voltamos ao quarto espalhamos os ossos e penas da rapina que a Rita e o Nuno encontraram. Medimos, fotografamos e discutimos na tentativa de a identificar. Começamos por procurar nas rapinas diurnas, já que raramente encontramos rapinas nocturnas mortas nas linhas. O guia não nos esclarece muito. Passamos à Internet. Desconfiamos de águia-calçada, mas as medidas do crânio não batem certo. Começamos a questionar se será uma rapina nocturna. Tem penas até às garras.
Um bufo-real! É um bufo-real! As medidas indicadas no guia batem certo com as do crânio que temos em mãos. Está identificado!





29 Dez. 09:
Depois do pequeno-almoço, vamos de Sendim em direcção a Póvoa - Ifanes, onde temos mais uma linha, à chuva, à nossa espera...
Pelo caminho tento dormitar, mas quando ouço a Julieta e o Tiago a comentar os campos todos inundados, abro o olho e desperto mal vejo o espectáculo lá fora. Meto a máquina em disparos contínuos e não paro de carregar no botão.
Campos de futebol com o relvado cheio de água, uma garça-vermelha na beira de um lago, nos baixios a água forma rios largos e compridos, e onde não há esses rios, há poças de água, há água a escorrer muros abaixo, no meio dos campos, enfim, em todo o lado. Basicamente não há grão de terra que esteja seco!
Ao atravessarmos Duas Igrejas reparamos na ponte onde a Julieta me tinha deixado a mim e ao Nuno no dia anterior e o rio já não passa debaixo dela, mas sim ACIMA!!!!
O caudal aumentou tanto, que quase não a reconhecíamos!
A Rita e o Nuno ficam do lado da Póvoa, e eu e o Tiago do lado de Ifanes.
A Julieta pede-me para ir ver o número de um apoio junto à estrada e que pode ser considerado o meio daquela linha. Digo que vem lá um cão e que tenho medo. Ela diz-me: O quê? Tens medo daquela meia leca?!
Lá vou eu, de rabo entre as pernas, cheia de medo. Não suporto cães. Sejam grandes ou pequenos, tenho sempre medo.
Enquanto grito Apoio 17, ela e o Tiago riem de dentro do carro a ver-me amedrontada e cautelosa.
O cão acaba por seguir na estrada e eu lá entro rapidamente na carrinha.
A Julieta deixa-nos em Ifanes e vai prospectar desde o apoio 17 na direcção do Nuno e da Rita, que se deparam novamente com campos lavrados! Primeiro caminham nas zonas onde existe vegetação a crescer já que as raízes e as folhas podem garantir melhor suporte. Mas não serve de nada. A vegetação é ainda escassa e o solo está muito mole… Tentam caminhar nas zonas mais baixas, já mais compactadas, onde não se afundam tanto, contudo, têm tanta água que molham as botas! Nenhuma das hipóteses parece boa para progredir e todo o terreno é traiçoeiro! Tanto podem enterrar apenas a sola da bota como se podem enterrar até aos joelhos! A Rita já só via o Nuno a diminuir a cada passada tal era a forma como se afundava!
Finalmente passam para um olival e umas pastagens, onde a terra é mais sólida e permite caminhar. A Rita encontra umas penas novamente encharcadas, de tal modo que só se via a ráquis. Apanha-as e faz o registo debaixo de chuva cada vez mais intensa. Abrigam-se sob uma azinheira que existia num terreno vizinho. Assim parados começam a ter frio, por estarem ensopados. Quando a chuva abranda retomam a prospecção. Mas os terrenos seguintes estavam alagados e a chuva começava novamente a cair. Desistem fazendo corta-mato até à estrada mais próxima.
Seguem de carro tendo sempre em atenção a localização da linha. Mais adiante encontram a Julieta a prospectar na direcção deles. Estacionam o jipe e continuam com ela até chegar a novos campos lavrados que obrigam a retomar o caminho de volta aos veículos.
Comunicam comigo e com o Tiago para saber onde estávamos e como nos podem ajudar. Quando finalmente nos encontramos, estou com os pés descalços no alcatrão, de meias e galochas na mão e começo a contar o que nos aconteceu:
Não parava de chover. Assim que começámos demos logo com um rio impossível de atravessar. Desviámo-nos.
O Tiago pergunta-me se tenho alguma coisa que se coma.
Mostro-lhe o que tenho: dois pedaços de pão muito pequenos, com um resto de vitela do jantar da noite anterior e uma fatia de bolo-rei.
Pergunta-me de quando é o bolo-rei.
De domingo, respondo.
Aceita, e eu começo a comer o pão. Mas de repente vejo um pica-pau e fico tão excitada que na confusão de agarrar binóculos, passá-los ao Tiago e tirar a máquina para fotografar, devo ter deixado cair o pão, porque não me lembro de o ter comido todo, e nunca mais o vi...
Já do outro lado do rio, começa a chover ainda com mais força.
Era suposto prospectar novamente debaixo da linha, desde a margem do rio até ao apoio seguinte, mas com aquela chuva dou aquele vão como não prospectado e enfio-me dentro do poste! Sim! Era daqueles de betão, por isso, conseguia pôr-me lá dentro toda encostada, e o Tiago, nos seus 2 metros, quase encostado a mim, para se proteger da chuva, que caía batida na direcção contrária.
Quando acalmou um pouco decidimos continuar, mas entretanto volta a chover com mais intensidade e ao ver uma cabana de madeira grito para o Tiago que ia mais à frente: Vamos para ali abrigar-nos!
Nisto, ouço uns cães do lado de dentro do muro de pedra a ladrar.
Já estão a a ver o meu pânico, não estão?!
E desta vez, asseguro-vos que não eram meias-lecas. Eram cães pastores, enormes e muitos!!
Saltaram o muro e vieram em direcção a mim. Desci da rocha onde estava e juntei-me ao Tiago. Estava em stress. Ele dizia-me para ter calma e continuarmos a caminhar. Eu gania, gemia, choramingava,... até que ele me disse: Dá-me a mão.
E assim lá fomos, de mão dada, sempre com a matilha atrás de nós.
Descíamos muros e os cães desciam também. Nada os detinha.
Como se não bastasse ao chegarmos junto do apoio seguinte, havia penas por todo o lado, o que nos fazia parar para fotografar, tirar o ponto GPS, recolher tudo e fazer os devidos registos na ficha de campo.
O Tiago disse-me: Vá, apanha tudo, que eu fico aqui.
E ficou, como meu guardião, costas voltadas para o apoio, e eu a fotografar, recolher, marcar o ponto, mas sempre de olho nos cães. E ele sempre a tentar acalmar-me: Vá, continua, continua.
Pergunta-me se tenho comida. Digo-lhe que já não tenho mais nada, e acho melhor dar-lhe um pau e umas pedras para as mãos, não vá ser preciso atirar à cabeça de algum cão.
E caso os cães decidam avançar sobre nós, como o apoio é de metal, e portanto fácil de subir, já me imagino a trepar pelo poste acima. E se mesmo assim, eles subirem também, penso que se não morrer comida por eles, morro electrocutada!
Termino de recolher e registar tudo e os cães sem parar de ladrar. Seguimos. E eles seguem-nos.
Sinto que o Tiago também está com medo, mas não demonstra. Já bem chega o meu medo, nitidamente expresso.
Passamos novo riacho que finalmente detém os cães!
Mais adiante a linha volta a cruzar o rio, que desta vez é bem largo e nalgumas zonas corre com muita força. Tentamos uma série de locais para atravessar.
Num deles há passagem por cima de pedras, quase até à outra margem. Apenas no metro final não vemos pedras onde nos apoiar e a água corre a toda a velocidade.
O Tiago vai até lá na tentativa de ver a profundidade desse espaço. Filmo.
Vejo-o a quebrar os ramos de uma árvore, para que consiga fazer passar os seus 2 metros, sem levar com eles na cara, mas eu já a imaginar que se tiver que passar por lá, não tenho onde me segurar, no meu metro e meio de gente, grito-lhe: Eu não sei se é boa ideia partires os paus; e solto uma risada.
Segurado aos ramos, ele mete uma perna à água, que fica bastante emersa.
Pergunto-lhe: É fundo?
Ele parte mais um pau, para medir a profundidade. Já lhe deve ter entrado água para a galocha, e terá percebido que não é com a perna que se mede! A água corre com tanta força que o pau fica imediatamente na diagonal e é difícil medir o que quer que seja.
Começo a rir, novamente, e no meio da risota lá lhe consigo dizer: Acho que... acho que é um bocadinho fundo!
E claro, quando ele me mostra o pau e por onde dava a água, era para aí um bom metro! Portanto, com a minha altura, além de ficar debaixo de água até à cintura, era bem capaz de ir com a corrente...
Continuo a rir... Mas estou a ficar nervosa.
Ele volta para trás. Vamos tentar descobrir outro sítio. Vimos um com uma fileira de árvores quase de um lado ao outro da margem. Onde havia árvores percebia-se que era muito fácil de passar, mas havia, novamente, um espaço sem árvores, onde a profundidade também era grande.
Ao lado havia um tronco de árvore cortado. Era grande, mas ainda assim disse ao Tiago para o tentarmos desenterrar... Não se mexia um milímetro!
Ainda começámos a escavar à volta com outros paus e pedras, mas rapidamente nos apercebemos das nossas figuras! A solução não era aquela.
Tentámos um tronco. O Tiago pôs-se dentro de água e as galochas ficaram logo inundadas... Assim que lançou o tronco à água, este segurou-se um pouco, mas rapidamente foi com a corrente.
Havia um monte de troncos de carvalhos cortados, mesmo ao lado do rio. Começámos a fazer uma barreira dentro de água com eles. No fim de já termos uma estrutura minimamente capaz de nos apoiar, a corrente levou-os...
Se quando encontramos cadáveres de aves isto parece um autêntico CSI, esta tarde estava a parecer um verdadeiro Surviver!!
Começámos a pôr a hipótese de desistir e tentar descobrir outra passagem mais à frente, mas estávamos a atrasar-nos...
Voltar para trás também não se afigurava boa solução, porque teríamos de enfrentar novamente os cães. Estávamos encurralados!
O Tiago tinha visto uma cancela de madeira e disse-me para irmos buscá-la e tentar fazer uma passagem. Estava completamente podre e a cair aos bocados... Mais uma tentativa falhada...
Voltámos junto do rio e disse-lhe para tentarmos uma última vez. Continuámos a pôr os troncos de carvalho à água, mas não tínhamos tempo para estar ali o dia todo a fazer uma passagem...
Tentámos passar então por cima dos que já tínhamos posto, mas era impossível... nem o meu corpo, bem mais pequeno que o dele, se segurava em cima dos paus, e acabei com água dentro das galochas... Já estávamos os dois encharcados. Desistimos.
Concordámos voltar para trás, mas o mais junto à margem possível, de forma a não sermos sentidos pelos cães, que estavam mais acima.
Finalmente chegámos a uma ponte e fomos a corta-mato até à estrada, onde a Julieta nos vinha buscar.
Na estrada, enquanto me descalçava e espremia as meias, mais dois cães a ladrar-nos, mas agora eram mesmo pequenos, ainda assim, tive medo e desta vez fui eu que pedi ao Tiago para me dar a mão!
Fomos almoçar à Residencial, para podermos tomar um banho quente, trocar de roupa e fazer novo estendal! Deixamos o aquecimento ligado e tudo espalhado para secar ao máximo.
À tarde, o Nuno e a Rita foram acabar de prospectar a linha de Duas Igrejas, desde o apoio onde eu e o Nuno tínhamos desistido no dia anterior, até ao apoio onde a Julieta tinha prospectado; e eu, a Julieta e o Tiago fomos acabar de prospectar a linha dos cães!!
O rio continuava sinuoso, curva para um lado, curva para outro, o que nos obrigava a encontrar formas de o contornar.
Numa parte tivemos mesmo de passar por uma ponte na estrada de alcatrão, onde achei piada a uma placa que indicava “Rio”... Meus senhores, qual rio?! Aquilo era mais que um Oceano!
Entre as 5 e as 5 e meia, já com pouca ou nenhuma luz ainda prospectámos até a um apoio, onde a Julieta descobriu uns ossos.
Registámos tudo e decidimos voltar para trás. Já não se via nada bem. Eles achavam que era por um lado e eu por outro... Já estava a ficar assustada, a pensar que ainda nos perdíamos no mato, como se não bastasse de aventuras por hoje!
Por fim, lá demos com a estrada... O Tiago para quebrar o gelo, disse: Já não é desta que dormimos no mato!
Do lado da Rita, mais um terreno lavrado e um rebanho com o seu pastor. Os cães começam a correr na direcção deles, sempre a ladrar. Aproximam-se cada vez mais e eles começam a fazer contas à distância a que estão do apoio. Como é de metal, a ideia de subir em caso de necessidade está bem presente! Felizmente, desta vez os campos lavrados são seus aliados! Os cães param ao chegar à orla dos mesmos. Provavelmente sabem que se vão enterrar tal como eles. Mais descansados e com os cães à distância, seguem caminho.
Não encontram vestígios até ao fim. Apenas mais cursos de água e muita lama.
E mais uma vez encharcados, regressamos à residencial.
Ao jantar eu e e Rita dividimos uma posta sendinense, mas como vinha muito mal passada, dada a grossura, decidimos parti-la às tiras e pedir para passar melhor. Criámos assim um novo prato: Tiras sendinenses!
Antes de dormir ainda voltámos a espalhar os ossos que tínhamos encontrado à tarde e concluímos ser um corvo.

30 Dez. 09:
Temos de fazer contagens de passagens, ou seja, estar duas horas a olhar para um vão entre dois apoios e registar todas as aves (nome da espécie, se possível e número) que passam muito acima, acima, através e abaixo da linha.
A Rita e o Nuno vão para Bruçó e a Julieta deixa-me com o Tiago em Picote e vai prospectar uma linha entre Ifanes e Constantim, que uma senhora no dia anterior nos disse ter sido corrigida.
Com as instruções da Julieta e mapas na mão, eles lá dão com a linha. Escolhem um troço perto de um caminho de terra batida e cujo vão atravessa um olival e alguns terrenos agrícolas. Depois de ver os números dos apoios, começam as contagens.
Tal como nos dias anteriores, a chuva continua. As gotas nos binóculos dificultam a visão e identificação das aves que passam, e como estão parados e cada vez mais molhados, começam a ter frio. Uma vez que vêem passar muitas aves no vão escolhido, optam por dividir tarefas: a Rita conta e identifica as espécies, dentro do possível, e o Nuno vai apontando. A variedade é grande: tentilhões, alvéolas, chapins, cias, escrevedeiras-de-garganta-preta, verdilhões, melros...
Quando a chuva aperta quase não se vêem aves. Ou porque elas se abrigam ou pela difícil visão que a água a cair provoca. A certa altura começa a cair com tanta intensidade que decidem abrigar-se no jipe. Como é alto, podem ficar dentro dele e continuar a ver o vão, ainda assim é preciso ter a janela aberta para continuar a ver a linha, portanto a Rita continua a apanhar com a chuva em cima! Mas pelo menos lá dentro o vento não é tão intenso.
Comunicamos através de mensagens de telemóvel.
Digo-lhe que do nosso lado também não parou de chover, umas vezes mais fraca, outras forte, outras cerrada, outras miúda, é à escolha! Estou congelada!
(E para escrever esta mensagem CURTA devo ter demorado MEIA hora!)
De repente começa a chover a potes. Aguentamos...
Com a chuva e a cor cinzenta do dia, é difícil ver o que quer que seja. Na primeira hora como choveu menos ainda conseguimos contar alguns passeriformes que passaram acima e abaixo da linha, e um milhafre-real e uma gralha que passaram abaixo.
Vejo o Tiago a dar aos braços e às pernas. Também está gelado.
Faço o mesmo, mas começo a enterrar-me na lama, tal a poça que se gera debaixo dos meus pés. Tenho de movimentar os pés, mas sem ser sempre no mesmo sítio.
A Julieta não vai conseguir terminar a prospecção antes do fim da nossa contagem e começo a pensar numa solução, para não estarmos ali ao frio: Pedir boleia!
Metemo-nos à estrada, debaixo de chuva, quase em hipotermia, até que passa uma carrinha. O Tiago faz sinais, eu meto-me quase no meio da estrada, com as mãos abertas para a frente, em sinal de Parem por favor! Mas a temer que pela velocidade não iam parar, começo a implorar, juntando as mãos como quem reza!
Pararam mais à frente. Desatámos a correr para a carrinha, não fossem desistir!
Levam-nos até Sendim e esperamos pela Julieta na Residencial. A pedido ainda nos deixam tomar banho, apesar de já termos feito o check-out.
Ligamos o aquecimento (que é quase no tecto) e damos uma secadela às meias. O Tiago consegue fazê-lo de pé, eu tenho que me encavalitar em cima da secretária!
Por fim a Julieta chega com um cadáver de rapina que tinha encontrado. Deve ter sido electrocutada antes da correcção. Teremos de o levar à Osteoteca para nos ajudarem a identificar.
Partimos para Torre de Moncorvo, para almoçamos com a Rita e o Nuno que chegaram lá primeiro e aproveitaram para conhecer o local. Agora que já não estão a trabalhar, o tempo melhora e deixa de chover! E por vezes até surge o sol. É irritante!
Depois de cada um se fazer à estrada de regresso a casa, envio uma ultima mensagem à Rita: Boas entradas amanhã!! E se for sem chuva já é BEM BOM!!

A linha que nos une

Narrado por Carla Veríssimo e Rita Moreira, com os contributos de Julieta Costa e Sónia Louro. Fotos de Carla Veríssimo.

17 Dez. 09:
A carrinha da SPEA sai novamente para o campo.
A nova colaboradora do Projecto Linhas Eléctricas vai estrear-se! Chama-se Rita Moreira.
E contamos ainda com uma voluntária – a Sónia Louro.
Aproveitamos a viagem até Gouveia para nos conhecermos um pouco. Em Moimenta da Serra paramos para ver as linhas a prospectar no dia seguinte.
Instalamo-nos mesmo no centro de Gouveia, numa Residencial de 2ª, com umas condições excelentes.
Está frio. Jantamos febras com morcela, para dar calor e energia para o dia seguinte.

18 Dez. 09:
7 da manhã e ouço a música da Pantera Cor-de-Rosa, baixa, calminha,... Vem do telemóvel da Sónia.
Acho curioso, lembra-me o som do telemóvel da Dora, não pela música, mas pela forma relaxante como me proporciona o acordar.
Fico na ronha mais uns minutos, até que salto num ápice: collants (a que já tinha cortado as costuras dos pés, de modo a fazer uma espécie de leggins, que facilita quando ficamos com as meias molhadas, e assim só temos de trocar as meias, sem precisar de tirar as collants); calças; meias; botas; calças impermeáveis; camisolas; polar; corta-vento; casaco, gorro e cachecol. Os binóculos, a máquina fotográfica e as polainas serão colocados minutos antes de começar a prospectar.
8 e 10 da manhã e já vamos na estrada que liga Gouveia a Moimenta da Serra.
Vemos duas águias-de-asa-redonda (Buteo buteo) pousadas em fios telefónicos.
Começamos no apoio 5, todas juntas, para que eu e a Julieta possamos explicar à Rita e à Sónia como proceder.
Como já é habitual, encontramos um proprietário de um pinhal. Trocamos umas palavras, explicamos o que andamos a fazer, ele diz-nos que nunca viu aves mortas por ali, nas linhas, e que o que costuma ver são tordos, rolas e melros. Depois ainda nos chama para nos mostrar um míscaro, que vai apanhar para a mulher fazer sopa para o jantar.
Explica-nos a receita e tudo!
De facto o Boletus edulis, o nome científico do míscaro, é uma das melhores e mais apreciadas espécies de cogumelos comestíveis.
A partir do apoio 3 sigo com a Rita, enquanto a Julieta e a Sónia vão fazer outra linha.
Vemos umas petinhas-dos-prados (Anthus pratensis) no chão, junto a umas oliveiras. Tem chovido e insectos não faltam, pelo que andam por ali a saltitar de um lado para o outro.
Com o seu bico forte e curvado, a sua cauda comprida, lá está um picanço-real (Lanius meridionalis), empoleirado no fio entre o apoio 7 e 8. Os picanços espetam os pequenos roedores, as pequenas aves ou os insectos de que se alimentam em arame farpado ou espinhos, para poder comê-los mais facilmente.
Uns metros à frente, piscos-de-peito-ruivo (Erithacus rubecula). Tento fotografar, mas quando me aproximo demais levantam voo das oliveiras e afastam-se um pouco.
Passada esta zona, deparamo-nos com algo muito colorido no meio do nada! Era um parque infantil e tinha também diversos póneis que pastavam à solta. Era uma Quinta Pedagógica. A linha passava pelo seu interior. Ouvimos muitos cães a ladrar, aparentemente presos dentro da quinta. Contudo, ao nos aproximarmos, começam a correr que nem doidos e rapidamente passam por pequenos buracos na rede ou locais por eles escavados. A primeira sensação é de medo, pois eles são muitos, uns pequenos outros grandes, e de todas as cores. Rapidamente percebemos que não nos querem mal, vêm apenas em busca de festas. Muitos são ainda cachorros, apesar do tamanho que já têm: são arraçados de cães serra da estrela! Continuamos a prospecção e eles deixam-nos ir.
Além de todas estas espécies vivas, encontramos ainda um musaranho morto, que talvez algum predador matou para comer, mas desistiu ao sentir-lhe o cheiro...
Diga-se que os musaranhos soltam um odor pouco atractivo,quando são atacados por um inimigo...
Como escalas para o fotografar, uso uma pilha e um osso de ovelha que tinha encontrado. Em vez de O Ratinho, a Mosca e o Homem, temos: O Ratinho, a Pilha e o Osso!!

Continuamos sem encontrar qualquer cadáver de ave e chegamos junto de uma fábrica chamada PRAFIL, cujo slogan é: o fio que nos une.
Achamos por demais romântico!
E em frente ao edifício, uma casota com um cão de loiça!!!
Nem queríamos acreditar!! Afinal a espécie não está em extinção!!
Começamos a rir e a traulitar: Se gostas de animais; Cães de Loiça; que não sujem os quintais; Cães de Loiça; são Bobis bestiais; Cães de Loiça; são cãezinhos maltados; de olhos esbugalhados; e nada saltitões; nunca se vão babar, nem ganir nem ladrar; nem ferrar os ladrões!

Acabamos a linha um vão à frente, já perto do início de Paços da Serra e esperamos que a Julieta nos venha buscar.
A paisagem é dominada por giesta-branca carvalhos, amieiros e freixos na galeria ripícola.
Almoçamos no mesmo restaurante da noite anterior. O senhor é simpático, a comida é muito saborosa e as doses bem servidas!
O bacalhau estava muito bom e as meninas aproveitam para provar um doce típico da região: requeijão com doce de abóbora!
À tarde, a Julieta e a Rita vão fazer uma linha em Nabais/Gouveia, e eu e a Sónia começamos uma que vai de S. Paio a Gouveia.
Enquanto vou confirmar o número de um apoio para ver se era ali que tínhamos de começar, vejo um peneireiro (Falco tinnunculus) a peneirar, mas coitado está tanto vento, que ele não se aguenta muito tempo parado no mesmo ar!
Deixa-se levar e esbate-se por peneirar mais um pouco, e sempre assim até que se afasta tanto que deixo de o ver. É aí que volto à terra e junto-me às meninas, para lhes dizer que o apoio onde devemos começar não é ali.
A Julieta deixa-me a mim e à Sónia um pouco mais abaixo. O apoio fica dentro de uma propriedade. Saltamos uma cerca e lá vamos. A Sónia começa a registar a data, o local, a hora de início, o número e a composição do apoio, o tipo de armação da linha, a voltagem e as coordenadas GPS.
Fazemos o círculo em volta para detectar alguma electrocussão e nada. Seguimos linha adiante, pelo meio de ovelhas que por ali pastavam, até que ouvimos uma voz atrás:
Olhe, desculpem...
E eu já a pensar nos piscicultores furiosos da Figueira da Foz a quererem esganar a Julieta e a Rosário, digo para mim mesma, Pronto, estamos lixadas!
Mas o pastor muito simpático e airoso, pergunta-nos apenas Ainda vão ficar aqui muito tempo? É por causa das cercas, não podem saltar, se não depois podem ficar abertas e as ovelhas saem.
E nós lá lhe explicamos o Projecto e dizemos que de facto entrámos ali por uma parte mais estragada da cerca, e que então devia ver melhor. Dizemos que só temos de fazer mais uns metros até à cerca e que depois saímos por onde nos indica.
Pergunto-lhe se alguma vez viu aves mortas debaixo das linhas e ele diz que sim, junto ao apoio seguinte, uma águia-de-asa-redonda, Mas a terra foi lavrada, por isso agora já não encontram lá nada.
Dou-lhe o número da Julieta para onde poderá ligar caso veja mais. Despedimo-nos.
Vamos muito concentradas no solo, com a imagem de ossos e penas na cabeça, para ser mais fácil encontrar qualquer vestígio.
De repente, apercebo-me que a Sónia parou.
Encontraste alguma coisa?
Parece que sim.
Vou ver. Havia penas na vertical a sair do meio da terra e da vegetação rasteira.
Tiro uma fotografia, antes de começarmos a juntar tudo para nova foto.
A Sónia regista na Ficha de Campo a causa da morte (colisão, pois estamos a meio de um vão); a data de morte (mais de 1 mês, já que há tecido ósseo exposto e não há actividade de larvas de insecto); o habitat junto ao cadáver; a distância ao apoio mais próximo e à linha; o número desse apoio e as coordenadas GPS.
Escrevemos também as mesmas indicações num saco de plástico e guardamos tudo lá dentro. A identificação da espécie fica para depois, ao fim do dia, quando tivermos guias que nos auxiliem.

Passadas algumas cercas, muros e canais, os meus olhos dão com uma petinha-dos-prados, inteira, imóvel, no chão.
Ainda tenho esperança que ao tocar-lhe desperte da sua morte e levante voo... Mas nada... e quando a viro de barriga para cima, vejo a pata direita com sangue e a Sónia repara no olho direito também todo ensanguentado... Colidiu entre dois apoios.
Esta linha é uma TAL com isoladores rígidos duplos, o que quer dizer que é muito perigosa para as aves, tanto a nível de colisões, pelos dois planos de colisão que apresenta, como a nível de electrocussões pela proximidade dos isoladores e das fases ao apoio.
Felizmente até ao fim não encontramos mais cadáveres. Fizemos uns 2 km de linha, mas ainda nos faltam mais 2, que terão de ficar para o dia seguinte pois já não temos luz suficiente para prosseguir.
Entramos num café em S. Paio, enquanto esperamos pela Julieta e pela Rita. A senhora tem a lareira acesa e está sentada junto a ela a aquecer-se. Faz-lhe companhia uma cadela.
Depois do bebermos o chá, diz-nos que podemos juntar-nos a ela para nos aquecermos. Aceitamos. Estamos geladas e temos os pés molhados...
Tiramos as botas a ver se secam um pouco, enquanto aquecemos as meias, os pés e o corpo todo!
Contamos-lhe o que andamos a fazer por ali, e ela diz-nos Com este frio... andarem por aí...
Enquanto a Sónia e a Carla seguem na direcção de Gouveia, eu e a Julieta vamos procurar a nossa linha. Depois de muitas curvas pela nova estrada em direcção a Gouveia, lá a encontramos, junto a um local de exploração de pedra e areias. Deixamos aí a carrinha e prosseguimos a pé. O início percorre-se com alguma facilidade, mas rapidamente se torna complicado. Estamos em plena Serra da Estrela e o que por ali não falta são declives e sobe e desce!
Atravessamos uma zona de vinha que, para pouca sorte nossa, está perpendicular à linha eléctrica! Devia haver uma regra de colocação de vinhas apenas paralelas às linhas! Depois de todo este exercício físico, chegamos ao apoio seguinte. Não encontramos vestígios de aves, apenas ossos daquilo que julgamos serem ovelhas. É aqui que a Julieta se apercebe que não tem a ficha de campo. A falta de papel para registar o que se encontre daí em diante e o facto de termos já alguns dados sobre a linha e apoios leva a que seja necessário voltar atrás. No entanto, como essa ideia não é muito animadora, uma melhor procura nos diversos bolsos das calças e casaco revelam a ficha bem dobradinha! Afinal não é necessário voltar atrás e podemos continuar!
Após uma zona de pastagem, começamos a descer na direcção de uma linha de água. Pelo caminho vamos encontrando um giestal que se mostra cada vez mais alto e denso. Ficamos incapazes de conseguir encontrar possíveis vestígios e é também complicado ver a linha por cima das nossas cabeças. A Julieta sobe a um carvalho que se encontrava ali no meio, de maneira a ter um melhor plano sobre a vegetação e ter uma noção do que ainda nos falta percorrer. Estamos perto do ribeiro! Ainda tentamos furar por entre o giestal, mas passá-lo torna-se impossível… Além de que junto do ribeiro existe um grande silvado que também não nos permitiria atravessar.
A única solução é regressar à zona de pastagem e seguir caminho pela estrada, atravessando a linha de água.
Do outro lado deparamo-nos com um portão. Contudo, uma vez que a casa está ainda em construção, este está aberto e conseguimos passar. Vamos avançando até nos depararmos com uma vedação de arame. Temos de dar a volta para poder continuar a prospecção.
Encontramo-nos na parte pior da prospecção. Mais uma vez nos deparamos com giestas mais altas do que nós e novamente em zonas de serra com grande declive.
Mais uma vez fazemos um esforço de modo a tentar chegar aos apoios, mas em vão. Só nos resta subir a encosta e esperar que no topo a vegetação seja mais escassa e baixa, uma vez que para baixo é já um socalco muito alto para descer.
Com esforço lá conseguimos subir até ao topo do monte e com menos vegetação. Avançamos apenas em direcção ao próximo apoio, uma vez que o vão é improspectável dada a densidade da vegetação. Mas mesmo chegar apenas aos apoios é quase impossível. Por mais que seja o esforço empenhado em empurrar giestas para abrir espaço para passar, os tojos e as silvas impossibilitam a continuação. O melhor é então tentar abrir caminho por entre as giestas de modo a tentar sair dali, sempre com o cuidado das pedras soltas e dos possíveis buracos ocultos pela vegetação.
Finalmente chegamos a uma zona mais aberta! Aqui a prospecção é novamente possível. Estamos a chegar a uma povoação e temos de atravessar o campo de futebol para chegar ao apoio. A linha segue agora por cima de quintais. Encontramos uma proprietária, a quem pedimos autorização para prospectar a linha e o apoio do seu terreno.
Explica-nos como chegar ao apoio e despede-se, dizendo que está muito frio para andarmos a trabalhar na rua.
A prospecção continua pelo meio da horta, com cuidado para não estragar as couves nem outras plantações que ali existem.
O dia já vai longo e a prospecção começa a tornar-se complicada devido à pouca luz existente. Saltamos mais um muro, aproveitamos o poste de um candeeiro para descer e estamos finalmente numa estrada alcatroada. O resto da prospecção terá de ficar para amanhã, dada a falta de luz.
Resta-nos então fazer o caminho de regresso para o carro, não sabendo a que distância estamos do mesmo, já que viemos a corta-mato e a estrada agora é sempre às curvas pela encosta da serra. É praticamente noite quando atravessamos Nabainhos e chegamos a um cruzamento que indica Gouveia. Felizmente trago comigo uma luz que nos sinaliza juntamente com os reflectores do casaco. É já noite escura e temos de ter cuidado com os automóveis, que passam depressa na estrada, já que não existem passeios. Ao fim de um bocado de caminhada, passa por nós um autocarro que pára e nos pergunta se precisamos de boleia até Gouveia. Parecia uma dádiva caída do céu, mas não queríamos ir até Gouveia, tínhamos de ficar bastante antes e naquela indecisão e incredibilidade do que estava a acontecer, o motorista encolheu os ombros e seguiu o seu caminho. Esta gente das terras mais pequenas é mesmo diferente daquela que vive na grande cidade! A desconfiança e espanto de tal oferta levou-nos a perder uma óptima boleia e restou-nos continuar a andar, sem saber quanto faltava.
O ar estava gélido, mas com o caminhar até tínhamos calor. Só não podíamos era beber a água que levávamos, de tão gelada que estava! Pelo caminho tentávamos reconhecer algo que nos permitisse dar uma noção de quanto faltaria até chegar à carrinha. Finalmente reconhecemos a casa em construção que havíamos passado. Certamente estamos perto! Depois de cerca de 4 km a pé, chegamos finalmente à carrinha! Depois de retomar o fôlego seguimos em direcção a S. Paio para apanhar a Carla e a Sónia, que nos aguardavam num café.

Quando elas chegam, vamos para a residencial, desesperadas por conforto e um banho quente!
Ao jantar, continuamos fiéis ao nosso amigo das doses, e não há nada como uma sopinha quente para nos aquecer o corpo. No fim, avisa-nos que está fechado no dia seguinte.
Agradecemos então toda a simpatia dos últimos dias e até lhe perguntamos o nome, pois havemos de voltar.
Após o jantar, tentámos identificar as aves que tínhamos encontrado. A que tinha morrido recentemente era uma petinha-dos-prados (Anthus pratensis) e o crânio limpinho seria provavelmente de uma alvéola (Motacilla sp.), dado que tinha um bico de insectívora e de cor preta. Já as penas da ave de rapina suspeitamos que sejam de um açor ou de um gavião (Accipiter sp.), uma vez que no nosso guia de identificação não aparecem penas das duas espécies para comparação.

19 Dez. 09:
Manhã bem cedo, mantemos as mesmas equipas para terminar as respectivas linhas. Apesar da linha da Julieta e da Rita ter menos apoios que a minha e da Sónia, é muito mais difícil de percorrer e tem mais obstáculos a transpor.
As poças de água estão congeladas, os tanques de água têm uma camada de água congelada ao de cima, as ervas têm gelo, mas não está muito frio. Está um bonito dia de sol!
As alvéolas-brancas (Motacilla alba) pousam num caminho, relativamente perto de nós, em busca de insectos.
Junto a um apoio está um aglomerado de penas listadas. O procedimento é o costumeiro.
Antes de terminarmos a linha ainda vemos mais aves, mas vivas, felizmente! Um chamariz (Serinus serinus), alguns pintassilgos (Carduelis carduelis), uma águia-de-asa-redonda e vários picanços-reais.
Somos também surpreendidas por cães a ladrar. Abrandamos o passo. Tentamos não mostrar medo, mas torna-se difícil, quando eles não acalmam e um está solto.
Ainda não tínhamos chegado perto da cerca junto ao apoio seguinte, quando ele salta do socalco de cima para o debaixo e fica mais perto de nós. Não demorámos muito a saltar aquela cerca!

Entretanto, eu e a Julieta seguimos na carrinha para o local onde havíamos terminado ontem. O apoio encontra-se dentro de um parque de campismo e, como tal, vamos em busca da entrada do mesmo. Para lá chegarmos temos de descer uma estrada de terra batida tão íngreme que até duvidamos se existe estrada por baixo. Depois de passar esta parte complicada, o resto faz-se bem.
À porta encontramos um senhor de nacionalidade estrangeira que vinha buscar o pão pendurado no portão, como é costume nestas zonas. Explicamos-lhe o que andamos a fazer e pedimos autorização para prospectar as linhas e apoios no interior da propriedade. Indica-nos que em tempos encontrou morta, perto de um apoio, uma “águia daquelas das cobras”. Entramos com a carrinha e fazemos a prospecção no interior. Todo o parque de campismo está construído em socalcos e aparenta ter boas condições, apesar de deserto nesta altura de frio.
A linha continua e atravessa uma data de quintais e casas particulares até chegar a uma zona mais aberta com um curso de água. Deixamos a carrinha e descemos para o terreno tendo o cuidado de não cair dentro de um tanque ao fazê-lo. Tudo é monitorizado até chegar à ribeira. Esta tinha alguma profundidade, corrente e cerca de 1,5 m de largura, pelo que não dava para saltar. Mas era apenas ela que nos impedia de continuar sem ter de dar uma enorme volta. Se ao menos existisse um tronco ou umas pedras que permitissem atravessá-la…
Troncos não existiam, apenas pedras. Tentamos rolar uma que estava ali mesmo ao pé, mas assim que chega à borda da água, fica quase submersa… Assim não ia funcionar. Continuava a ter muita água até à outra margem. Procurámos e mais acima encontrámos mais pedras. Umas enormes e certamente impossíveis de levantar ou arrastar. Mas conseguimos arranjar uma outra mais pequena. Com esforço, eu e a Julieta lá a levantamos e vamos levando até à água. Temos de parar no caminho para descansar, tal era o peso. Ao chegarmos novamente à borda da água, fazemos o maior esforço para a atirar, mas foi em vão… Não chegou sequer a meio da ribeira e ficou submersa na água. Só nos restava mesmo voltar atrás.
Atravessamos uma ponte pedonal sobre a ribeira e entramos numa propriedade em busca da linha e dos proprietários. Não encontramos ninguém, apenas um cãozinho preso a uma casota que se esconde quando aparecemos. O apoio é mesmo no meio do quintal, junto a um barracão, pelo que seria difícil encontrar algo.
O vão seguinte é novamente junto de uma propriedade. Como tal, vamos pelas ruas de Melo. As ruas são estreitinhas e as pessoas olham-nos com um ar curioso. Pelo caminho encontramos um posto de transformação. Tem algumas penas soltas em redor, mas existem também galinhas nos terrenos em volta, pelo que ficamos na dúvida se serão de aves domésticas ou selvagens. Fica a ideia de apanhar penas de galinha para ver os padrões das mesmas.
O último apoio está também numa propriedade, pelo que não lhe conseguimos aceder. Voltamos então para a carrinha e falamos com o outro grupo para ver onde andam e se precisam de ajuda.
Tinham encontrado uma rapina e por isso estavam mais atrasadas. Eu e a Julieta tentamos perceber no mapa onde era o final da linha delas para poder prospectar essa parte. A linha acabava mesmo em Gouveia, perto daquilo que parecia ser uma fábrica no mapa impresso da fotografia aérea. A única fábrica que conhecia ali na zona era em Gouveia, mas perto de S. Paio, pelo que nos dirigimos para lá. Por ser sábado, não tinha lá ninguém. Havia uma série de linhas que vinham ter à fábrica, mas nenhuma se aparentava com o esquema de linhas marcadas no Google. Não podia ser ali. Fomos então procurar noutra zona de Gouveia onde existissem linhas e fábricas semelhantes. Depois de muito andar para a frente e para trás e de atravessar Nespereira e encontrarmo-nos novamente em S. Paio em vez de Gouveia, lá demos com o fim da linha. Aquilo que julgávamos ser uma fábrica, afinal era o Intermarché! Nesta zona existiam imensas linhas, uma vez que havia uma subestação. Parámos a carrinha no parque do supermercado e fomos para a linha, que terminava num posto de transformação mesmo na esquina do Intermarché. Pedimos autorização para subir as paletes vazias que se encontravam empilhadas e começámos a prospecção. Afinal aquilo era uma derivação da linha pretendida. Subimos uns muros, saltamos umas redes e finalmente encontrámos a Carla e a Sónia. No caminho de regresso à carrinha saímos por um dos portões de uma das propriedades como se fossemos as verdadeiras proprietárias!, porque o portão estava aberto e aquilo parecia tudo nosso!
Como o senhor António tinha o restaurante fechado, acabamos num restaurante de bomba de gasolina na zona industrial de Gouveia.
Após alguma discussão sobre o acompanhamento da vitela, pois pretendíamos outro que não batatas fritas, preferencialmente as batatas a murro que serviam com o bacalhau, esta lá veio e estava óptima!
Enquanto a Carla foi à casa-de-banho, surge um senhor que servia às mesas, a perguntar se estávamos ali em alguma estância para fazer esqui, ao que respondemos que não. Após olhar bem para cada uma de nós, disse que conhecia a Sónia, que ela já ali tinha estado antes! Era impossível, o senhor só podia estar a fazer confusão porque a Sónia nunca ali havia estado.
À tarde faço parelha com a Rita numa derivação da linha que a Julieta e a Sónia prospectam.
Estamos em Folgosinho! Essa aldeia famosa na Serra da Estrela!
Para prospectar 5 apoios, acabamos por demorar quase o mesmo tempo que elas nos seus 12, porque só para percebermos que era de facto aquela a derivação, andámos às voltas, às voltas, mapa na mão, conversa com elas pelo walkie-talkie, contagem de apoios, tudo para perceber o que tínhamos de fazer! Ainda por cima havia uma corrida de Moto4 ali na zona e estava tudo cheio de jipes. Foi um dos rapazes que nos indicou a terra onde estávamos: Freiche (que é como quem diz Freixo da Serra!, já que aqui nesta zona toda a gente assobia quando fala!).
Felizmente não encontrámos aves mortas ao longo do percurso, mas ouvimos cotovias (Galerida sp.) e vemos escrevedeiras-de-garganta-preta (Emberiza cirlus) e petinhas e cães, como de costume, sempre a ladrar desenfreadamente.
Já não se fazem cães como em Aveiro, que fogem com o rabo entre as pernas!!
Passamos por vários castanheiros, as castanhas já são poucas e pequenas, mas ainda apanho algumas para ir comendo pelo caminho.
Quando terminamos vamos para o fim da linha da Julieta e da Sónia, para as apanhar. Elas estavam mesmo a finalizar.
Durante a viagem de regresso vamos contando as aventuras umas às outras. Elas brincam comigo, porque gostei muito do pastor simpático e airoso!
A Sónia conta que encontraram várias pessoas ao longo dos terrenos que também lhes disseram: Com este frio, andarem aqui a trabalhar!...
E depois, diz para nós: Olha, deve ser daí que vem a expressão Trabalhar pra aquecer!
Desatamos a rir.
Depois é a vez da Julieta contar que a Sónia queria ficar com o cão de um pastor....
E assim fomos rumo a sul, ao som de estórias de cães, pastores e aventuras no campo!