Uma molha nunca vem só...

Narrado por Carla Veríssimo, com os contributos de Julieta Costa, Rita Moreira e Nuno Luz. Fotos de Carla Veríssimo.

27 Dez. 09:
Época de Natal. Festejo-o em família no Alentejo.
Parto por volta do meia-dia e faço três horas e meia de viagem até Leiria.
Das quatro às sete e meia tenho tempo de arrumar todas as bagagens: as que ficam e as que vão para mais uma semana de trabalho de campo.
A Julieta chega entretanto e temos como destino, Miranda do Douro!
Vamos sozinhas até ao Porto, onde o Tiago Carvalho se junta a nós como voluntário.
A Rita vinha com outro voluntário - o Nuno Luz. Saíram de Lisboa por volta do meio-dia, de malas, mochilas e mapas na mão!
Uma pesquisa na internet tinha indicado que o caminho mais curto e mais rápido era atravessar a fronteira e entrar em Miranda por Espanha, e até lá, de facto, não houve qualquer dificuldade, o problema foi depois, já noite, em Espanha, com chuva por vezes intensa, e eles perdidos!! E tais eram os becos sem saída, que quando deram conta estavam dentro de uma garagem particular!!, com uma mota estacionada e roupa estendida!
Depois da ajuda da dona da casa e mais umas quantas voltas em estradas de terra batida, lá encontraram o caminho certo.
Já passava das 22 h, quando chegaram, finalmente!! Procuraram um local para jantar. Contudo, os restaurantes já estavam fechados ou a fechar e diziam que não serviam àquelas horas...
Debaixo dum grande aguaceiro, correram para o jipe e seguiram viagem para a residencial, na esperança que lhes servissem tostas ou sandes.
A residencial tinha bastante gente e provavelmente seria um dos poucos locais ainda abertos àquela hora. Pediram tostas e um chá quente para aquecer.
Eram 23h30 quando finalmente foram dormir.
Eu, a Julieta e o Tiago, jantámos no Porto e partimos pelas 22h30.
Na zona do Marão deparámo-nos com nevoeiro e blocos de gelo na berma da estrada.
Depois seguimos até Bragança e descemos para Miranda. Uma volta enorme....
A Residencial era na Estrada Nacional que liga Miranda a Mogadouro... Ainda tínhamos de andar mais um pouco. E de facto, andámos, andámos, e da Residencial nada... começámos a achar que não podia ser tão longe... Àquela hora não havia pessoas nas ruas para pedir informações. Continuámos a andar. Por fim, lá chegámos a um sítio cheio de carros estacionados e algumas pessoas. Parámos.
Estávamos em frente à Associação Cultural dos Pauliteiros de Miranda. O Tiago saiu da carrinha para perguntar onde era a Residencial. Disseram que eram em Sendim, a uns 9 km dali...
Lá fomos. Quando cheguei só pensava num banho quente para relaxar o corpo, descansar e dormir.
Deitámo-nos às 3h30 da manhã...
Portanto para quem iniciou uma viagem ao meio-dia, poder deitar-se às 3h30 da manhã, quase non-stop, é bom, não é?!...

28 Dez. 09:
De manhã, nem consigo saltar da cama, tal era o jet lag...
A Julieta sai do quarto às 8 e peço-lhe que me chame no fim do pequeno-almoço. Prefiro não comer e dormir um pouco mais.
Só às 10 horas me consigo recompor.
Às 11 eu e o Tiago já estamos a prospectar uma linha em galhardete e a Rita e o Nuno uma em triângulo, em Fonte d´Aldeia, perto de Sendim.
A Julieta deixa-nos e vai começar a prospecção pelo outro lado da linha.
Desta vez, com a carrinha das Linhas e o jipe do Nuno, a prospecção deve ser mais rápida!
Chove. De precaução quando calço as botas, meto logo uns sacos de plástico, para adiar os pés molhados, mas os lameiros estão encharcados e em certas partes as botas começam a ficar enterradas na terra ocre e ouve-se um shlof shlof...
O Tiago diz que não usa as botas dele desde o 12º ano, e que são novas...
Pergunto-lhe se já estão a deixar entrar água. Diz-me que não, e então digo-lhe Ainda bem, mas se lhe tens muito amor, aviso já que vão ficar muito sujas...
Chegamos a uma zona de bosquete onde perdemos algum tempo a observar vários passeriformes. Tento fotografar, mas as alvéolas e os tentilhões não param...
Mais uns passos e a máquina dispara para umas estevas e zimbros, característicos da paisagem, juntamente com as giestas, os bosques de sobreiros e azinheiras, as vinhas e os planaltos com aproveitamento agro-silvo-pecuário.
O primeiro cadáver é encontrado no meio do cascalho e da terra ensopada. Chamo o Tiago para ver e explico-lhe o procedimento.
Tem as asas, a quilha, penas e pouco mais. É um passeriforme, mas as penas estão tão molhadas que não consigo identificar.
O Tiago encontrou ainda um osso de mamífero, que atiro para fora da zona da prospecção de modo a não haver confusões futuras.
Entretanto, no céu um milhafre-real, com a sua cauda tipicamente em forma de rabo de bacalhau, que vira e revira continuamente.
A Rita e o Nuno ainda não tinham andado muito quando encontraram uma petinha morta no chão. Parecia uma petinha-dos-prados (Anthus pratensis) mas estava de tal modo ensopada que era difícil confirmar. Tinha morrido recentemente por colisão e ainda estava intacta. Recolheram, anotaram tudo o que era necessário e seguiram. Algumas zonas estavam de tal modo alagadas que era impossível prospectá-las. Um pouco mais à frente, junto a um apoio, encontraram um dos isoladores partidos no chão e algumas penas presas no silvado junto à base do mesmo. Começaram a achar que aquela era uma linha perigosa. Ainda só tinham andado 400 m e já 2 aves mortas!
Apanharam as penas ensopadas e alguns ossos em redor. Penas daquele tamanho indicavam ser de rapina, mas estavam tão encharcadas e sujas que não era possível perceber qual seria. A Rita espreitou por entre o silvado e no fundo viu uma pata! Felizmente o Nuno tinha trazido uma tesoura de poda e a muito custo lá conseguiu apanhá-la. A pata era enorme e tinha penas até baixo, o que reduzia logo o número de espécies possíveis. Tinhas umas garras também enormes e fechadas sobre si mesmas. O interior da pata estava escuro. A ave deve ter morrido electrocutada no apoio. Enquanto a Rita fotografa e apanha mais ossos e penas, o Nuno continuava à procura do crânio. Tinha de estar por ali e não ia desistir enquanto não o encontrasse. Deu a volta ao silvado e começou a cortar. E eis quando a Rita ouve: “Encontrei!”. O crânio era enorme e estava já totalmente limpo.
Mais à frente encontraram uns postes que não correspondiam à numeração que estavam a seguir. Havia um cruzamento de linhas e provavelmente a numeração era da outra linha. Os registos na ficha de campo eram cada vez mais complicados devido à chuva que caía.
Entraram num campo lavrado. A terra solta, com toda a água da chuva, estava transformada em lama. Era muito difícil avançar naquele terreno, pois estavam constantemente a enterrar-se.
Toda a linha estava sobre lameiros, pelo que era necessário saltar muros constantemente. Avançaram até uma ribeira, agora transformada num rio com corrente. Tentaram encontrar um local para passar, mas era muito larga. Viram-se obrigados a voltar para trás na esperança de encontrar passagem. A única solução era trepar um pouco as raízes de uma árvore, agora descobertas pelas forças da água e tentar saltar para o outro lado. Um pouco de coragem, balanço e um salto, mas sempre com receio de caírem dentro de água! Aterraram do outro lado! Já estava!
Já noutro lameiro, deparam-se com vacas a meio do terreno. Elas olham com alguma curiosidade, e eles olham para a distância a que estão da árvore ou muro mais próximos!!
Mas claro elas continuaram a pastar.
Ao almoço, antes de entrar no restaurante tiro as botas enlameadas e encharcadas e troco de meias.
Os sacos de plástico ajudaram um pouco, mas não são a solução para o problema.
Eu e a Rita comentamos que deviam inventar umas botas de campo como as de borracha: totalmente de plástico e impermeáveis, mas com todo o conforto, maleabilidade e aderência das de campo.
Talvez façamos uma patente!
Comemos uma alheira, típica de Miranda do Douro, e não de Mirandela!! Nada de confusões!
À tarde faço par com o Nuno. A Julieta deixa-nos perto de uma aldeia chamada Duas Igrejas, ou como se escreve em Mirandês: Dues Eigreijas.
Estamos em terras dos Galadum Galandaina.
Começamos a linha por um lado e o Tiago e a Rita por outro.
Ainda não parou de chover. Já só temos uma hora de luz, por isso a Julieta posiciona-se num apoio a meio da linha e progride na direcção deles, para conseguirmos pelo menos fazer metade da linha.
A Rita e o Tiago deparam-se novamente com campos lavrados, nos quais se enterram, por vezes, até aos joelhos. Os pés estão irreconhecíveis, parecem uns bolos de lama pesados e enormes.
A chuva intensa perturba a visão ao longe e têm muita dificuldade em perceber se vão encontrar um caminho enlameado ou um ribeiro. A inclinação dos terrenos e a água que corre neles leva a crer que será um ribeiro, mas como nos caminhos também corre muita água, torna-se quase indiferente ir por um lado ou outro. Só quando tentam passar percebem que a corrente é tão forte, a vegetação ripícola tanta e a largura tão grande, que é impossível atravessar. Não encontram como chegar à outra margem e desistem.
Vão andando pelo caminho (mais ribeiro que outra coisa!), na esperança de chegar a alguma estrada onde os possam apanhar.
Entretanto encontram uma ponte improvisada!, e apesar de encharcados, decidem continuar a prospectar a linha, para ter algum rendimento.
A quantidade de água dificulta observar o chão e mesmo que lá existam vestígios, o mais provável é terem sido arrastados pela água… Finalmente encontram a Julieta!
Eu e o Nuno, do nosso lado, atravessamos uma ponte, debaixo da qual passa um rio cor de lama, já que as terras estão todas encharcadas e a água vai colorando.
Só conseguimos fazer 5 apoios. Os terrenos estão por demais aguados e enterramos as botas a cada passo. Desistimos... Voltamos para trás, a corta-mato, em direcção à aldeia.
No fim de passarmos os lameiros, os nabos inundados de alguma Dona Teresa e de filmarmos as águas de um rio, que corriam com uma força brutal, chegamos a um caminho, onde perguntamos a um senhor se há algum café por ali.
Sempre com chuva a cair, ele responde-nos que há um a 200 metros.
Andamos, andamos, os carros passam e além da chuva que nos cai em cima levamos com a água do chão, que se levanta à velocidade e proximidade que passam da berma...
E do café, nada. Definitivamente o senhor não sabe o que são 200 metros!
Devemos ter passado a aldeia toda e café, nem sinal. Das duas igrejas de Duas Igrejas, também só vemos uma...
O Nuno só dizia: De facto só perguntámos se havia algum café. Não perguntámos se estava aberto!
Por fim chegamos onde? À Associação Cultural dos Pauliteiros de Miranda!!
Exactamente! Onde estivemos na madrugada anterior!
Estava aberta!
Entrámos. O jovem atrás do balcão disse-nos para fecharmos a porta, que tinha o ar condicionado ligado, mas como esperávamos pelo resto da equipa, não sabíamos se teríamos tempo de pedir alguma coisa. Primeiro pedimos um chá. Depois vimos luzes de um carro lá fora, que julgámos serem eles e cancelámos o pedido. Saímos.
Afinal não eram e voltámos a entrar. O rapaz voltou a dizer-nos para fecharmos a porta!
Voltámos a pedir um chá. Quando ele se vira para aquecer a água, a luz vai abaixo!
O Nuno diz em tom de gozo: Pode ser um chá gelado, não faz mal!!
Mas rapidamente a luz volta. Pergunta-nos que chá queremos. O Nuno pede preto. Eu não quero.
O rapaz vira-se para os chás e não sabe qual é o preto. Há um manancial de chás na prateleira! A teoria do Nuno é a de que como a população local é idosa, o que mais servem são chás!
Continuamos na brincadeira. Mais vale gozar com a situação. Estamos ensopados. O Nuno diz que amanhã temos de fazer linhas de escafandro!
Rio!
Rio de rir e rio de água!!!
Entretanto chegam os outros. O Tiago estava todo encharcado e não tinha trazido mais mudas de calças nem calçado.
Perguntam ao senhor do café onde podiam ir comprar galochas e calças impermeáveis. Indica-lhes uma loja que vende de tudo.
Quando chegamos à Residencial, tiramos finalmente a roupa molhada.
Aliás, acho que só temos os dentes secos!! E como estão dentro da boca, ainda assim são húmidos, da saliva!!
A bolsa da máquina fotográfica está ensopada. Penduro os casacos impermeáveis no candeeiro por cima das camas, umas camisolas e umas calças numa cadeira e para o resto da roupa faço um estendal com as fitas dos cortinados da janela. O estandarte é digno de fotografias!
Até a máquina está cheia de gotas de água, ligo-a e desligo-a intermitentemente de forma a limpá-la o melhor possível.
Tiro do bolso do casaco a ficha de campo, toda molhada e amarfanhada.
A Julieta abre-a com muito cuidado e deixa a secar o que chama de palimpsesto! E de facto, aquela “coisa”, é um autêntico manuscrito sobre o qual não vamos escrever de novo, nem raspar, porque se não desaparece, mas no qual desejamos arduamente fazer reaparecer os primitivos caracteres!!
No fim do banho (mais água, portanto!, mas agora quente e reconfortante!), jantamos no restaurante da Residencial.
Quando voltamos ao quarto espalhamos os ossos e penas da rapina que a Rita e o Nuno encontraram. Medimos, fotografamos e discutimos na tentativa de a identificar. Começamos por procurar nas rapinas diurnas, já que raramente encontramos rapinas nocturnas mortas nas linhas. O guia não nos esclarece muito. Passamos à Internet. Desconfiamos de águia-calçada, mas as medidas do crânio não batem certo. Começamos a questionar se será uma rapina nocturna. Tem penas até às garras.
Um bufo-real! É um bufo-real! As medidas indicadas no guia batem certo com as do crânio que temos em mãos. Está identificado!





29 Dez. 09:
Depois do pequeno-almoço, vamos de Sendim em direcção a Póvoa - Ifanes, onde temos mais uma linha, à chuva, à nossa espera...
Pelo caminho tento dormitar, mas quando ouço a Julieta e o Tiago a comentar os campos todos inundados, abro o olho e desperto mal vejo o espectáculo lá fora. Meto a máquina em disparos contínuos e não paro de carregar no botão.
Campos de futebol com o relvado cheio de água, uma garça-vermelha na beira de um lago, nos baixios a água forma rios largos e compridos, e onde não há esses rios, há poças de água, há água a escorrer muros abaixo, no meio dos campos, enfim, em todo o lado. Basicamente não há grão de terra que esteja seco!
Ao atravessarmos Duas Igrejas reparamos na ponte onde a Julieta me tinha deixado a mim e ao Nuno no dia anterior e o rio já não passa debaixo dela, mas sim ACIMA!!!!
O caudal aumentou tanto, que quase não a reconhecíamos!
A Rita e o Nuno ficam do lado da Póvoa, e eu e o Tiago do lado de Ifanes.
A Julieta pede-me para ir ver o número de um apoio junto à estrada e que pode ser considerado o meio daquela linha. Digo que vem lá um cão e que tenho medo. Ela diz-me: O quê? Tens medo daquela meia leca?!
Lá vou eu, de rabo entre as pernas, cheia de medo. Não suporto cães. Sejam grandes ou pequenos, tenho sempre medo.
Enquanto grito Apoio 17, ela e o Tiago riem de dentro do carro a ver-me amedrontada e cautelosa.
O cão acaba por seguir na estrada e eu lá entro rapidamente na carrinha.
A Julieta deixa-nos em Ifanes e vai prospectar desde o apoio 17 na direcção do Nuno e da Rita, que se deparam novamente com campos lavrados! Primeiro caminham nas zonas onde existe vegetação a crescer já que as raízes e as folhas podem garantir melhor suporte. Mas não serve de nada. A vegetação é ainda escassa e o solo está muito mole… Tentam caminhar nas zonas mais baixas, já mais compactadas, onde não se afundam tanto, contudo, têm tanta água que molham as botas! Nenhuma das hipóteses parece boa para progredir e todo o terreno é traiçoeiro! Tanto podem enterrar apenas a sola da bota como se podem enterrar até aos joelhos! A Rita já só via o Nuno a diminuir a cada passada tal era a forma como se afundava!
Finalmente passam para um olival e umas pastagens, onde a terra é mais sólida e permite caminhar. A Rita encontra umas penas novamente encharcadas, de tal modo que só se via a ráquis. Apanha-as e faz o registo debaixo de chuva cada vez mais intensa. Abrigam-se sob uma azinheira que existia num terreno vizinho. Assim parados começam a ter frio, por estarem ensopados. Quando a chuva abranda retomam a prospecção. Mas os terrenos seguintes estavam alagados e a chuva começava novamente a cair. Desistem fazendo corta-mato até à estrada mais próxima.
Seguem de carro tendo sempre em atenção a localização da linha. Mais adiante encontram a Julieta a prospectar na direcção deles. Estacionam o jipe e continuam com ela até chegar a novos campos lavrados que obrigam a retomar o caminho de volta aos veículos.
Comunicam comigo e com o Tiago para saber onde estávamos e como nos podem ajudar. Quando finalmente nos encontramos, estou com os pés descalços no alcatrão, de meias e galochas na mão e começo a contar o que nos aconteceu:
Não parava de chover. Assim que começámos demos logo com um rio impossível de atravessar. Desviámo-nos.
O Tiago pergunta-me se tenho alguma coisa que se coma.
Mostro-lhe o que tenho: dois pedaços de pão muito pequenos, com um resto de vitela do jantar da noite anterior e uma fatia de bolo-rei.
Pergunta-me de quando é o bolo-rei.
De domingo, respondo.
Aceita, e eu começo a comer o pão. Mas de repente vejo um pica-pau e fico tão excitada que na confusão de agarrar binóculos, passá-los ao Tiago e tirar a máquina para fotografar, devo ter deixado cair o pão, porque não me lembro de o ter comido todo, e nunca mais o vi...
Já do outro lado do rio, começa a chover ainda com mais força.
Era suposto prospectar novamente debaixo da linha, desde a margem do rio até ao apoio seguinte, mas com aquela chuva dou aquele vão como não prospectado e enfio-me dentro do poste! Sim! Era daqueles de betão, por isso, conseguia pôr-me lá dentro toda encostada, e o Tiago, nos seus 2 metros, quase encostado a mim, para se proteger da chuva, que caía batida na direcção contrária.
Quando acalmou um pouco decidimos continuar, mas entretanto volta a chover com mais intensidade e ao ver uma cabana de madeira grito para o Tiago que ia mais à frente: Vamos para ali abrigar-nos!
Nisto, ouço uns cães do lado de dentro do muro de pedra a ladrar.
Já estão a a ver o meu pânico, não estão?!
E desta vez, asseguro-vos que não eram meias-lecas. Eram cães pastores, enormes e muitos!!
Saltaram o muro e vieram em direcção a mim. Desci da rocha onde estava e juntei-me ao Tiago. Estava em stress. Ele dizia-me para ter calma e continuarmos a caminhar. Eu gania, gemia, choramingava,... até que ele me disse: Dá-me a mão.
E assim lá fomos, de mão dada, sempre com a matilha atrás de nós.
Descíamos muros e os cães desciam também. Nada os detinha.
Como se não bastasse ao chegarmos junto do apoio seguinte, havia penas por todo o lado, o que nos fazia parar para fotografar, tirar o ponto GPS, recolher tudo e fazer os devidos registos na ficha de campo.
O Tiago disse-me: Vá, apanha tudo, que eu fico aqui.
E ficou, como meu guardião, costas voltadas para o apoio, e eu a fotografar, recolher, marcar o ponto, mas sempre de olho nos cães. E ele sempre a tentar acalmar-me: Vá, continua, continua.
Pergunta-me se tenho comida. Digo-lhe que já não tenho mais nada, e acho melhor dar-lhe um pau e umas pedras para as mãos, não vá ser preciso atirar à cabeça de algum cão.
E caso os cães decidam avançar sobre nós, como o apoio é de metal, e portanto fácil de subir, já me imagino a trepar pelo poste acima. E se mesmo assim, eles subirem também, penso que se não morrer comida por eles, morro electrocutada!
Termino de recolher e registar tudo e os cães sem parar de ladrar. Seguimos. E eles seguem-nos.
Sinto que o Tiago também está com medo, mas não demonstra. Já bem chega o meu medo, nitidamente expresso.
Passamos novo riacho que finalmente detém os cães!
Mais adiante a linha volta a cruzar o rio, que desta vez é bem largo e nalgumas zonas corre com muita força. Tentamos uma série de locais para atravessar.
Num deles há passagem por cima de pedras, quase até à outra margem. Apenas no metro final não vemos pedras onde nos apoiar e a água corre a toda a velocidade.
O Tiago vai até lá na tentativa de ver a profundidade desse espaço. Filmo.
Vejo-o a quebrar os ramos de uma árvore, para que consiga fazer passar os seus 2 metros, sem levar com eles na cara, mas eu já a imaginar que se tiver que passar por lá, não tenho onde me segurar, no meu metro e meio de gente, grito-lhe: Eu não sei se é boa ideia partires os paus; e solto uma risada.
Segurado aos ramos, ele mete uma perna à água, que fica bastante emersa.
Pergunto-lhe: É fundo?
Ele parte mais um pau, para medir a profundidade. Já lhe deve ter entrado água para a galocha, e terá percebido que não é com a perna que se mede! A água corre com tanta força que o pau fica imediatamente na diagonal e é difícil medir o que quer que seja.
Começo a rir, novamente, e no meio da risota lá lhe consigo dizer: Acho que... acho que é um bocadinho fundo!
E claro, quando ele me mostra o pau e por onde dava a água, era para aí um bom metro! Portanto, com a minha altura, além de ficar debaixo de água até à cintura, era bem capaz de ir com a corrente...
Continuo a rir... Mas estou a ficar nervosa.
Ele volta para trás. Vamos tentar descobrir outro sítio. Vimos um com uma fileira de árvores quase de um lado ao outro da margem. Onde havia árvores percebia-se que era muito fácil de passar, mas havia, novamente, um espaço sem árvores, onde a profundidade também era grande.
Ao lado havia um tronco de árvore cortado. Era grande, mas ainda assim disse ao Tiago para o tentarmos desenterrar... Não se mexia um milímetro!
Ainda começámos a escavar à volta com outros paus e pedras, mas rapidamente nos apercebemos das nossas figuras! A solução não era aquela.
Tentámos um tronco. O Tiago pôs-se dentro de água e as galochas ficaram logo inundadas... Assim que lançou o tronco à água, este segurou-se um pouco, mas rapidamente foi com a corrente.
Havia um monte de troncos de carvalhos cortados, mesmo ao lado do rio. Começámos a fazer uma barreira dentro de água com eles. No fim de já termos uma estrutura minimamente capaz de nos apoiar, a corrente levou-os...
Se quando encontramos cadáveres de aves isto parece um autêntico CSI, esta tarde estava a parecer um verdadeiro Surviver!!
Começámos a pôr a hipótese de desistir e tentar descobrir outra passagem mais à frente, mas estávamos a atrasar-nos...
Voltar para trás também não se afigurava boa solução, porque teríamos de enfrentar novamente os cães. Estávamos encurralados!
O Tiago tinha visto uma cancela de madeira e disse-me para irmos buscá-la e tentar fazer uma passagem. Estava completamente podre e a cair aos bocados... Mais uma tentativa falhada...
Voltámos junto do rio e disse-lhe para tentarmos uma última vez. Continuámos a pôr os troncos de carvalho à água, mas não tínhamos tempo para estar ali o dia todo a fazer uma passagem...
Tentámos passar então por cima dos que já tínhamos posto, mas era impossível... nem o meu corpo, bem mais pequeno que o dele, se segurava em cima dos paus, e acabei com água dentro das galochas... Já estávamos os dois encharcados. Desistimos.
Concordámos voltar para trás, mas o mais junto à margem possível, de forma a não sermos sentidos pelos cães, que estavam mais acima.
Finalmente chegámos a uma ponte e fomos a corta-mato até à estrada, onde a Julieta nos vinha buscar.
Na estrada, enquanto me descalçava e espremia as meias, mais dois cães a ladrar-nos, mas agora eram mesmo pequenos, ainda assim, tive medo e desta vez fui eu que pedi ao Tiago para me dar a mão!
Fomos almoçar à Residencial, para podermos tomar um banho quente, trocar de roupa e fazer novo estendal! Deixamos o aquecimento ligado e tudo espalhado para secar ao máximo.
À tarde, o Nuno e a Rita foram acabar de prospectar a linha de Duas Igrejas, desde o apoio onde eu e o Nuno tínhamos desistido no dia anterior, até ao apoio onde a Julieta tinha prospectado; e eu, a Julieta e o Tiago fomos acabar de prospectar a linha dos cães!!
O rio continuava sinuoso, curva para um lado, curva para outro, o que nos obrigava a encontrar formas de o contornar.
Numa parte tivemos mesmo de passar por uma ponte na estrada de alcatrão, onde achei piada a uma placa que indicava “Rio”... Meus senhores, qual rio?! Aquilo era mais que um Oceano!
Entre as 5 e as 5 e meia, já com pouca ou nenhuma luz ainda prospectámos até a um apoio, onde a Julieta descobriu uns ossos.
Registámos tudo e decidimos voltar para trás. Já não se via nada bem. Eles achavam que era por um lado e eu por outro... Já estava a ficar assustada, a pensar que ainda nos perdíamos no mato, como se não bastasse de aventuras por hoje!
Por fim, lá demos com a estrada... O Tiago para quebrar o gelo, disse: Já não é desta que dormimos no mato!
Do lado da Rita, mais um terreno lavrado e um rebanho com o seu pastor. Os cães começam a correr na direcção deles, sempre a ladrar. Aproximam-se cada vez mais e eles começam a fazer contas à distância a que estão do apoio. Como é de metal, a ideia de subir em caso de necessidade está bem presente! Felizmente, desta vez os campos lavrados são seus aliados! Os cães param ao chegar à orla dos mesmos. Provavelmente sabem que se vão enterrar tal como eles. Mais descansados e com os cães à distância, seguem caminho.
Não encontram vestígios até ao fim. Apenas mais cursos de água e muita lama.
E mais uma vez encharcados, regressamos à residencial.
Ao jantar eu e e Rita dividimos uma posta sendinense, mas como vinha muito mal passada, dada a grossura, decidimos parti-la às tiras e pedir para passar melhor. Criámos assim um novo prato: Tiras sendinenses!
Antes de dormir ainda voltámos a espalhar os ossos que tínhamos encontrado à tarde e concluímos ser um corvo.

30 Dez. 09:
Temos de fazer contagens de passagens, ou seja, estar duas horas a olhar para um vão entre dois apoios e registar todas as aves (nome da espécie, se possível e número) que passam muito acima, acima, através e abaixo da linha.
A Rita e o Nuno vão para Bruçó e a Julieta deixa-me com o Tiago em Picote e vai prospectar uma linha entre Ifanes e Constantim, que uma senhora no dia anterior nos disse ter sido corrigida.
Com as instruções da Julieta e mapas na mão, eles lá dão com a linha. Escolhem um troço perto de um caminho de terra batida e cujo vão atravessa um olival e alguns terrenos agrícolas. Depois de ver os números dos apoios, começam as contagens.
Tal como nos dias anteriores, a chuva continua. As gotas nos binóculos dificultam a visão e identificação das aves que passam, e como estão parados e cada vez mais molhados, começam a ter frio. Uma vez que vêem passar muitas aves no vão escolhido, optam por dividir tarefas: a Rita conta e identifica as espécies, dentro do possível, e o Nuno vai apontando. A variedade é grande: tentilhões, alvéolas, chapins, cias, escrevedeiras-de-garganta-preta, verdilhões, melros...
Quando a chuva aperta quase não se vêem aves. Ou porque elas se abrigam ou pela difícil visão que a água a cair provoca. A certa altura começa a cair com tanta intensidade que decidem abrigar-se no jipe. Como é alto, podem ficar dentro dele e continuar a ver o vão, ainda assim é preciso ter a janela aberta para continuar a ver a linha, portanto a Rita continua a apanhar com a chuva em cima! Mas pelo menos lá dentro o vento não é tão intenso.
Comunicamos através de mensagens de telemóvel.
Digo-lhe que do nosso lado também não parou de chover, umas vezes mais fraca, outras forte, outras cerrada, outras miúda, é à escolha! Estou congelada!
(E para escrever esta mensagem CURTA devo ter demorado MEIA hora!)
De repente começa a chover a potes. Aguentamos...
Com a chuva e a cor cinzenta do dia, é difícil ver o que quer que seja. Na primeira hora como choveu menos ainda conseguimos contar alguns passeriformes que passaram acima e abaixo da linha, e um milhafre-real e uma gralha que passaram abaixo.
Vejo o Tiago a dar aos braços e às pernas. Também está gelado.
Faço o mesmo, mas começo a enterrar-me na lama, tal a poça que se gera debaixo dos meus pés. Tenho de movimentar os pés, mas sem ser sempre no mesmo sítio.
A Julieta não vai conseguir terminar a prospecção antes do fim da nossa contagem e começo a pensar numa solução, para não estarmos ali ao frio: Pedir boleia!
Metemo-nos à estrada, debaixo de chuva, quase em hipotermia, até que passa uma carrinha. O Tiago faz sinais, eu meto-me quase no meio da estrada, com as mãos abertas para a frente, em sinal de Parem por favor! Mas a temer que pela velocidade não iam parar, começo a implorar, juntando as mãos como quem reza!
Pararam mais à frente. Desatámos a correr para a carrinha, não fossem desistir!
Levam-nos até Sendim e esperamos pela Julieta na Residencial. A pedido ainda nos deixam tomar banho, apesar de já termos feito o check-out.
Ligamos o aquecimento (que é quase no tecto) e damos uma secadela às meias. O Tiago consegue fazê-lo de pé, eu tenho que me encavalitar em cima da secretária!
Por fim a Julieta chega com um cadáver de rapina que tinha encontrado. Deve ter sido electrocutada antes da correcção. Teremos de o levar à Osteoteca para nos ajudarem a identificar.
Partimos para Torre de Moncorvo, para almoçamos com a Rita e o Nuno que chegaram lá primeiro e aproveitaram para conhecer o local. Agora que já não estão a trabalhar, o tempo melhora e deixa de chover! E por vezes até surge o sol. É irritante!
Depois de cada um se fazer à estrada de regresso a casa, envio uma ultima mensagem à Rita: Boas entradas amanhã!! E se for sem chuva já é BEM BOM!!

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